José Mourinho teve o contrato renovado com o Real Madrid até 2016| Foto: AFP

A foto-pintura com moldura oval está na parede há tempo suficiente para integrar a paisagem e nem chamar a atenção. Obras na casa e repentinamente me vejo com o quadro nas mãos; as imagens dos avós, tio, tia e pai atraem o olhar como se fosse a primeira vez. As fotografias retocadas a pincel causam impressão de antiguidade, mas as pessoas retratadas são recentes e compõem o patrimônio afetivo da minha geração. É verdade que os acontecimentos levaram alguns mais cedo e os jovens têm sensação de imemorialidade, como se a moldura de gesso – cor ouro-velho – fosse relíquia milenar. Assim, fitando os retratos, o filme das pessoas que construíram a narrativa da família se projeta na retina.

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Da tia, lembranças. Quando se foi, parecia tão velha e hoje me causa alguma estranheza ser mais velho que ela. Algumas coisas são relativas e a percepção da ausência varia conforme as emoções do momento que se vive, e nesse instante senti falta da presença de quem me ninava em alemão quando me dava fatias imensas de broa de milho, cobertas com nata e mel. Ancestrais são raiz. Quando se vão, a árvore genealógica desce uma geração e quem estava acostumado a ser folha, galho, quando muito caule, se vê como ponto de fixação de uma família no mundo. Raízes não oscilam ao vento ou colorem na primavera; devem ser firmes para dar direção a quem está susceptível às variações da existência, sem o luxo da dúvida e diversão.

Cruzo o olhar com o azul cintilante que vem do tio. A face jovem do retrato ainda está tão firme quanto a voz de locutor de rádio. Rádio ouvido antes da liça no chiqueiro, estrebaria, galinheiro, açude, roça. As músicas que formam a cultura da fronteira com o Paraguai embalam o chimarrão na varanda quando a aurora chega. Opiniões fortes sobre a melhor maneira de dar jeito no Brasil, notícias de falecimento, casamento, batizados. Os bailes da terceira idade, o carteado. Tudo vem de um só golpe na lembrança e a saudade se intensifica. Que vida é essa que nos leva a viver tão longe das raízes?

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O cinema da memória forma narrativa que individualiza o grupo na coletividade que tem comportamentos em grande escala, a exemplo da migração do campo para a cidade. Para uma família, isso é história que a identifica no meio de tantas situações iguais. Quem ficou na roça; quem está na cidade. Os rumos que seguiram em cada opção, as relações entre os parentes que se distanciaram. Primos dos primos que a internet localiza e põe em rede no momento em que a narrativa de um já se cindiu completamente do outro. Unidos por uma palavra – o nome da família –, vão tecendo, com fiapos antigos, os fios que formam as novas ligações.

A fragmentação da família é fato da modernidade. Pouca gente, relações mal resolvidas, afeição determinada por ordem judicial. Referenciar-se em patriarcas e matriarcas, com almoços de domingo nos quais os mais velhos se sentavam à ponta da mesa e ficavam com os melhores pedaços do frango, parece politicamente incorreto. De minha parte, prefiro que os velhos sejam reverenciados nem que me sobre apenas a coxinha da asa.