O ano de 1968 agitou o mundo. Praga foi esmagada pelas esteiras dos tanques russos pilotados por soldados trazidos de outras partes do império que não entendiam o que estava acontecendo. Dany le Rouge incendiou as ruas de Paris com barricadas e palavras de ordem dizendo que é proibido proibir. Pequim viu professores lapidados em praça pública sob a acusação de que o conhecimento de matemática, geografia, história, é "burguês", contrarrevolucionário. O martírio de Edson Luís de Lima Souto em junho, no Rio, destampou a violência ditatorial juridicamente expressada no AI-5 em dezembro. A ofensiva do Tet abriu o ano com imagens do sofrimento de civis e militares rasgando a alma política dos norte-americanos que foram às ruas, em multidão, gritando que desejavam amor, não guerra.
Em maio desse ano louco, um helicóptero decolou carregado de soldados americanos que partiam em missão secreta ao Laos, país vizinho do Vietnã, para onde a guerra havia se estendido. Entre eles, o sargento John Hartley Robertson. A nave foi abatida. Os documentos sobre o voo, classificados como sigilo militar, remanesceram ocultos e John se tornou mais um nome cinzelado no monolito que eternizou a tristeza das ações bélicas. Memória de cada soldado americano morto para que se tenha a certeza de que a violência da guerra atinge pessoas que, de outra maneira, poderiam seguir suas vidas. Maneira de dizer que as dores individuais não se curam com a glória das nações.
John sobreviveu. Capturado pelos vietcongues, ficou prisioneiro quatro anos, regularmente torturado por ser "espião". Fugiu, e ao vagar pela selva, quase inválido pelos maus-tratos, acabou nos braços de uma vietnamita enfermeira, viúva, que o acolheu, curou e deu a ele a identidade do finado. Assim, John se tornou Dan Tan Ngoc, apresentando-se como vietnamita de origem francesa. Casado com a salvadora, teve quatro filhos e hoje, com 76 anos, demonstrando leve demência senil, seu oblívio acabou porque a história veio a lume em um documentário cinegráfico.
John não se expressa em inglês e tem apenas fragmentos de memória da família norte-americana. A história, os lampejos de lembrança, a vontade de viver, são pontos de contato com o enredo do filme Oblivion. Não há torso desnudo de galã, mas a sensação de acomodamento incômodo é idêntica. No filme, uma pessoa vivendo em muitos corpos. Na saga de John, um corpo para duas pessoas. Viver duas vidas numa só provoca cruzamento de emoções que põe a identidade em xeque. Quem sou? Quem somos?
O mundo se esqueceu dele. John olvidou de si mesmo? O amor da salvadora criou outra pessoa no mesmo corpo? As décadas de Dan Tan Ngoc como camponês nos cafundós do Vietnã contrastam com a visita à embaixada norte-americana em 2010, em Hanói, para confirmar a identidade de John H. Robertson. Em 2012, encontrou-se com a irmã octogenária no Canadá. Enquanto Dan vivia a rotina de agricultor, marido e pai, John estava ali num cantinho, cabisbaixo, sofrendo.
Para muitos, 68 foi o ano que não terminou. Para John, durou 44 anos.
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