A lembrança da rodada de chimarrão às 6h30 da manhã em Novo Sarandi, então uma vila barrenta entre Toledo e Marechal Cândido Rondon, está viva na memória; nessas tertúlias rolava solta, em alemão caipira, a troça, fofoca e planos de trabalho rural para o período que se iniciava. A seriedade com leveza me marcou e, por força disso, raramente tratei de temas técnicos nesse espaço jornalístico de prosa matinal com a linguagem típica dos textos forenses. Porém ao passear pela mídia vi notícias sobre as indenizações que a British Pe­­troleum terá de pagar pelos da­­nos causados no Golfo do México com o vazamento de petróleo e a possibilidade de que a empresa não suporte e as vítimas acionem o governo norte-americano. Na mesma linha, sobreviventes do naufrágio do Bateau Mouche, ocorrido em 1988, obtém decisão judicial que condena os proprietários, aparentemente falidos, a pagar indenização por dano moral e se aventa a hipótese de acionar o poder público, concedente da licença para a circulação do barco. O tema, responsabilidade pelas falhas do serviço público, é de grande interesse porque mexe com o nosso voto e bolso, mas exige palavras jurídicas.

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Os exemplos ilustram a relevância da existência de bons marcos regulatórios para os serviços públicos e fiscalização efetiva sobre a sua execução. No primeiro caso, a extração de petróleo em águas muito profundas ainda não havia mostrado seus perigos com toda intensidade e, se espera, o acidente sirva para que a le­­gislação brasileira sobre a lavra do pré-sal seja aperfeiçoada. No segundo caso, a falta de fiscalização foi nítida, pois regras sobre navegação são antigas e suficientes para que haja segurança.

Existe ojeriza à privatização apesar da calamidade das rodovias, portos marítimos e aeroportos. Dos portos fluviais e das ferrovias nem há que se falar: eles não existem. Nossos rios, depósitos de sujeira, poderiam estar limpos e navegáveis, dando ensejo a emoções quando a chalana fosse bem longe, no remanso do rio Paraguai. As estradas de ferro são arremedo de ferrorama. Contudo, não há investimentos estatais efetivos. Ao manter um pé em cada canoa, deixando indefinida a opção política entre a estatização plena e a delegação desses serviços à iniciativa privada, com assunção dos ônus e bô­­nus inerentes a cada escolha, surge zona gris que é o paraíso do capitalismo que viceja na sombra do Estado, incapaz de sobreviver ao sol da competição. A indecisão dá azo à omissão das autoridades que deveriam a tempo e modo fazer licitações e concursos, gerando provisoriedade permanente, na qual interinos designados ao talante dos poderosos de ocasião no Legislativo, Executivo ou Judiciário, prestam serviços de má qualidade ao público. O transporte urbano, na maioria das cidades, não passou por licitação e o "arranjo" dura dé­­cadas; os serviços notariais e de registro civil e imobiliário são delegados sem concurso público; a coleta de lixo é, frequentemente, objeto de urgência fabricada para que os municípios possam entregá-la a empresas que escapam da competição licitatória.

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Nas indenizações por danos causados pelos prestadores de serviço público que estão nessa interinidade sói se constatar a insolvência e, algumas vezes, até a condição de fantasmas jurídicos, sem nenhum patrimônio efe­­tivo. Aí, os cofres públicos são o porto seguro das vítimas. Ao fim, todos ficam felizes, exceto o ente abstrato que foi lesado e não percebeu: o povo. Penso, um dos caminhos para minorar essa sangria seria responsabilizar a autoridade que deveria ter promovido a licitação para concessão, per­­missão, delegação do serviço público. A autoridade, que não respeita os prazos e formalidades legais, tem culpa pessoal pelas escolhas que fez. É o que se chama culpa in eligendo na voz dos ju­­ristas. Para clarear a tese, uma hi­­pótese: se um cartorário, interino além do exíguo prazo legal, causa dano e não faz o ressarcimento, a autoridade que o no­­meou deve responder com seu patrimônio para reparar o prejuízo.

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