Mulher: “Você deveria escrever coisas que as pessoas entendam e não esse palavreado incompreensível, hermético”.
Homem: “Hermético!? Talvez seja prudente usar sinônimo menos hermético”.
Mulher: “Não tergiverse. Mantenha-se no fulcro temático”.
Homem: “Tua filodoxia está muito acentuada hoje”.
Entenderam-se embora o mundo não os entendesse e, sem novas palavras sobre o tema, ela começou a despejar fervura no coador. O aroma do café flutua até as narinas. O silêncio é rompido pelo som da água gravitacionada cruzando o pó escuro que fumaceia. A xícara está na ponta dos dedos do braço estendido, à espera da sobra, quando o sabor se abranda.
O líquido negro vaza pelas bordas da térmica nova. As paredes metálicas ficam com listras e ela, com o dedo levemente queimado, sinaliza a ele para limpar e rosquear a tampa. Ele se aproxima, veda a vasilha e a leva para baixo da torneira. O pano seco lustra e pronto: garrafa reluzente, café quente.
Pão, nata, schmier completam a frugalidade matinal. Ainda não se falaram depois da admoestação severa e da redarguição rude. Na mente dele se esboça um madrigal para transformar em palavras poéticas aquela contenda entre o fogão e a pia. Engendra, escande, caça rimas como quem pensa na cisne que tisne e a eletricidade neural é interrompida pelo disjuntor que cai. Apagão. Cérebro em dormência, enquanto as papilas gustativas entram em erupção com os sabores.
Os sabiás refugam alpiste, quirera de arroz e se banqueteiam com comida industrial
Os dentes quebrando a casquinha morena do pão d’água que ela torrou fazem som curioso, inevitável, deselegante e chique na suavidade do desjejum moderado. Olham-se e ainda não falaram sobre as banalidades usuais. Não houve comentários sobre o gris da madrugada. O sol, saudoso amigo dos curitibanos, não rompe a névoa. Nos olhares há dúvida sobre levar adiante o duelo vocabular, usando o léxico de dicionário ambulante que acumularam, ou deixar tudo para lá e correr escovar os dentes para chegar no horário da aula.
Ele cogita insinuar que ela está nervosa em decorrência da condição feminina, e se lembra da última ocasião em que perguntou sobre aquele momento peculiar e isso rendeu hora de conversa nonsense. Ops, melhor não entrar nessa vereda exaustiva!
Homem: “Deixa que eu arrumo a mesa e lavo a louça”.
Mulher: “Gatinho, você já pôs comida para os passarinhos?”
Ele, antes de responder, pensa no paradoxo do gatinho cuidando dos passarinhos e esboça sorriso.
Homem: “Irei já, já. Vou terminar de ajeitar a cozinha”.
Mulher: “Não há pressa, mas não podemos perder tempo. Vou me maquiar”.
Os sabiás ansiosos batem o bico na tigela esperando a ração canina a que se acostumaram. Coisa estranha. Refugam alpiste, quirera de arroz e se banqueteiam com comida industrial. Fast food para quem está com aparência obesa.
A manhã entrou na rotina suave e o sol começou a iluminar as janelas, com a luz débil da inclinação outonal vazando pelo edredom que cobre a cidade. Enfim, diz Djavan, o dia amanheceu no mar alto da paixão.
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