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Paulo Briguet

Crônica dos sete peixes

Há um lago dentro de nós, e esse lago se chama esquecimento. Minha profissão é pescar nas águas turvas que o formam. Sou pescador, pecador.

Um casal de amigos espera o primeiro filho. Há alguns meses, o pai me encontrou na rua e disse que os médicos, no exame de ultrassom, haviam identificado um cisto no cérebro da criança. Meu amigo pediu preces. Antes de sair para a pescaria, pensei no menino que vai nascer em breve. Enquanto caminhava em direção ao lago, lembrei-me também do sermão de Santo Antônio aos peixes, quando os homens não quiseram ouvi-lo. Mesmo a dor e o desprezo têm um sentido: eis a lição do menino e do santo.

Na beira do lago, preparo linha, anzol e isca. Espero e penso; a linha faz círculos concêntricos na superfície da água. Minutos depois, vem a fisgada. O primeiro peixe é um livro em perfeito estado. Abro-o e leio: "O Espírito de Deus se movia sobre a face das águas".

Passa-se um longo tempo. Não sei há quantas horas estou aqui. Quando menos espero, sinto uma nova fisgada. É um relógio parado na hora em que meu pai morreu.

O terceiro peixe não tarda: é uma garrafa. Os reflexos do sol no vidro me confundem. De início, acho que é uma garrafa de cerveja – uma das milhares que tomei nas festas da república e no Bar do Nonoca. Depois, parece-me ser vinho. Mas, quando pego-a nas mãos, vejo que é água. Água pura e limpa.

O quarto peixe é uma espada, porque preciso lutar.

O quinto peixe é um sapato e me faz lembrar os caminhos que percorri: o câmpus da universidade, a redação do jornal, a rua, a avenida, o atalho, a gruta, o santuário.

O sexto peixe é um pão. Sai da água em perfeito estado, feito o livro. Noto que é um pão ázimo. Sinto fome e ele me alimenta.

O novo peixe demora, demora, demora. Parece a eternidade. Enquanto espero, o celular toca. É meu amigo – e tem boas notícias. Os médicos fizeram mais dois ultrassons nos últimos meses e verificaram que não existe nenhum problema com a criança. O cisto desapareceu por encanto. E pensar que alguns médicos, em um caso semelhante ocorrido em Portugal, chegaram a sugerir o aborto... Meu amigo agradece as orações e diz que o menino se chamará Antônio. É o nome do santo que falou aos peixes. O nome do meu bisavô português, abandonado ainda criança no Brasil. Felicito o amigo – e imediatamente vem a última fisgada.

O sétimo peixe é um peixe. Não me parece um peixe comum nestas águas turvas do esquecimento. Suas escamas refletem as cores do sol como um prisma. Devolvo o peixe à água. Em seguida, mergulho no lago atrás dele, seguindo-o até um lugar que desconheço. O lugar de onde escrevo estas palavras.

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