Depois da última sessão de quimioterapia, Rafael decidiu fazer uma limpeza nas gavetas. Achou contas de luz, recortes de jornal, fotografias de infância, cartões de visita, cadernos escolares, um livro de Física e surpresa um crucifixo de madeira e bronze.
Por alguns minutos permaneceu com o objeto nas mãos, sem saber o que pensar. Lembrou-se de uma conversa que teve com Lúcia no dia em que estudavam para a prova de Física. "Deus não existe, Lúcia. A ideia de um ser onipotente carece de fundamento racional ou científico. Essa fórmula que acabamos de estudar representa a verdade. Já o seu Cristo é um produto da imaginação."
Lúcia apenas sorriu e disse: "Até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados". Em seguida, como se não tivesse dito a frase anterior, mencionou outra fórmula do ponto que estudavam.
Os cabelos de Rafael voltariam a crescer, garantira o médico. Agora, com o crucifixo nas mãos, Rafael pensava nas palavras de Cristo no Calvário: "Deus meu, Deus meu, por que me abandonastes?" Uma antiga tradição diz que o monte Calvário é o crânio de Adão. Na tela do computador desligado, Rafael viu os reflexos de sua cabeça.
Na pior fase do tratamento, Rafael recebeu a visita de Lúcia. Ela sorria, mas não mencionou suas antigas conversas sobre fé. Falaram dos tempos do colégio. Deram muitas risadas; Rafael se viu livre das náuseas por uma hora. Quando a amiga já se despedia, Rafael disse em voz baixa: "Às vezes eu penso, Lúcia, que o câncer é o destino de toda matéria".
"Que é a verdade?", perguntara Pilatos. Em outro momento, Jesus dissera: "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará". Rafael pensou que o mundo se encaminha em outro sentido: cada vez mais os homens e mulheres veneram a mentira e a servidão. Basta ligar a tevê. A petrolífera à beira da falência anuncia grandes lucros; a Justiça Eleitoral celebra a liberdade do voto obrigatório; ativistas seminuas pregam a paz e a tolerância hostilizando um padre indefeso; a feiura, a vadiagem e o vício fazem marchas de vaidade e autoglorificação. Conhecereis a mentira e ela vos escravizará, responderia o Adversário.
Depois de limpar as gavetas, Rafael decidiu sair um pouco de casa. O médico lhe contara sobre um paciente que gostava de caminhar assim que deixava as sessões de quimioterapia.
Era uma tarde de sol; Rafael passou em frente da igreja do bairro e notou que a porta estava aberta. Entrou, aproximou-se do altar e, sem pensar no que fazia, ajoelhou-se. Lúcia pousou a mão direita sobre o ombro do amigo e disse: "A casa é sua".
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