Durante 14 anos da minha vida, não quis conversar com Deus. De maneira que a minha conta corrente no Céu está bem negativa. Meu silêncio vaca-amarela com Deus durou de 1986 a 2000; embora Aracy e Maria rezassem muito para compensar o ateísmo do filho e neto, jamais quitarei essa dívida. Acho que eu não conseguiria sair do vermelho nem se vivesse 300 anos.

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Se eu tivesse um pingo de vergonha na cara, nunca mais ousaria pedir nada em minhas orações. Toda minha conversa com Deus deveria ser um longo e interminável agradecimento. Mas eu não tomo jeito. Continuo fazendo pedidos – e Ele continua atendendo. Farei, então, uma lista das coisas que não vou pedir.

Não vou pedir que me cures do medo. Ele é meu velho irmão e mensageiro. Se o medo não existisse, como eu conseguiria vencê-lo e ter coragem para fazer o necessário?

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Não vou pedir que me cures da dor. Sem ela, como eu faria para evitar o mal? A dor me disciplina, me informa, me forma. Especializei-me em ler os seus sinais. De qualquer modo, se o incômodo tornar-se insuportável, posso tomar um comprimido.

Não vou pedir que me cures da carne. Preciso dela para sentir o calor, o frio, o suor, a lágrima, as batidas do coração, o sonar do cérebro em funcionamento. A carne tem uma nobreza esquecida – uma espécie de memória do Paraíso. Um dia ela não me pesará.

Não vou pedir que me cures do pecado. Aqui ele sempre existirá, ao menos como possibilidade. Lutar com o anjo e vencê-lo dá-nos sempre um renovado sentido à vida. Quero olhar nos olhos da tentação – e não baixar a vista, até que ela me dê as costas e vá embora.

Não vou pedir que me cures do tempo. Ele é o espelho turvo em que me observo todas as manhãs e noites. À tarde, chego a esquecer de que ele existe, tão entranhado está. Na miserável confusão de luz e trevas que sou eu mesmo, o tempo é uma espécie de tábua, onde me agarro para não afundar. E canto "Mãezinha do Céu"; e canto "Shemá Israel"; e penso nas duas feridas do papa João Paulo II, quando foi baleado na Praça de São Pedro, no Dia de Nossa Senhora de Fátima, há 33 anos, a idade de Cristo. Não, Senhor, definitivamente não precisas me curar do tempo. Sem ele, como eu poderia ser cronista?

Não sou ninguém. Sou apenas um devedor das graças que me foram concedidas para sempre. Pensei em pedir que me cures da morte, mas não vou fazer isso. Cura da morte a menina que está com câncer; o menino do coração lutador; o pedinte que vai ficando mais curvo a cada vez que o encontro. Cura o mundo da morte, Senhor. E mais não digo, além de obrigado.

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