Fui acordado por uma tempestade de pedras. Ainda estava escuro; após rezar um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, pensei que teria de usar o guarda-chuva de minha mãe. É uma alegria para mim. Quando uso o guarda-chuva de Aracy, é como se ela estivesse me protegendo do mal e da morte. Sinto-me um menino ao lado da mãe, caminhando pelas ruas do Centro de São Paulo, nos anos 70.
Na minha mesa de trabalho está o relógio de meu pai. É um relógio parado; assim como eu, acerta apenas duas vezes por dia. Mas eu gosto de manter próximo esse objeto aparentemente inútil. Ao olhar para o relógio, ganho forças para lutar contra o tempo. Um dia, não precisarei mais dele. Do tempo.
No meio da tarde, saio com o guarda-chuva de minha mãe e vou até o shopping para tomar um suco de laranja. Ali vejo o Renato. Não somos exatamente amigos, mas gostamos de conversar. Ele sempre aparece do mesmo jeito: surge do nada, como um personagem que aparece no palco sem passar pelas coxias. E então diz meu nome: “Paulo...”
Paulo também era o nome do meu pai – e ele também surgia assim. Às vezes eu sinto que ele está me enviando algum recado por intermédio do Renato.
Ao olhar para o relógio, ganho forças para lutar contra o tempo. Um dia, não precisarei mais dele. Do tempo
Renato pede licença e vem até a mesa em que tomo o meu suco de laranja. Usa uma camisa polo preta e se senta meio de lado, como se estivesse pronto para sair a qualquer momento. “Como vai, Paulo? Eu não gosto de shopping. Mas hoje decidi vir.”
Comento que está fazendo calor, mesmo com a chuva, e acrescento que o shopping é um ambiente protegido dos humores do tempo. Ofereço-lhe suco de laranja, mas ele não quer. Olha de repente para mim, coloca a mão sobre meu ombro esquerdo e pergunta: “Paulo, como você lidou com a morte de seu pai?”
Penso no dia em que esperávamos meu pai sair da cirurgia no Hospital do Câncer. Mas, antes de meu pai, veio o médico. Veio para dizer que havia poucas esperanças. Digo a Renato que a dor não acaba nunca, mas com o tempo é como se a pessoa fosse entrar pela porta a qualquer instante. “Mas você deve saber como é, Renato, porque perdeu seu pai há muito tempo.”
O pai de Renato morreu em um acidente aéreo, nos anos 80. Ele sempre me conta a história dessa perda com detalhes: a estranha melancolia do pai antes da viagem; o fato de que dois aviões se chocaram no ar; a queda de um avião no rio e outro na terra, sendo que no primeiro houve sobreviventes e no segundo, nenhum.
Então ele me olha nos olhos outra vez: “Minha mãe morreu há uma semana. Tenho de aprender a viver sem ela”. Agora é a minha de vez de colocar a mão sobre o ombro esquerdo de meu amigo. De uma forma estranha, Renato e eu somos agora irmãos.