Há pouco ouvi a história de uma mulher que sempre passava por uma praça cheia de mendigos. Em casa, sentia uma fome inexplicável, que nenhuma refeição fazia passar. Um dia ela entendeu que estava sentindo a fome dos outros e começou a servir sopa aos mendigos.
Então eu imaginei um personagem. Esse homem indefinido que deixaremos sem nome, idade ou descrição passava todos os dias, no caminho do trabalho para casa, pela frente do Hospital do Câncer. De repente, começou a sentir dores lancinantes por todo o corpo. Foi a vários médicos, fez uma bateria de exames, mas ninguém conseguiu identificar a causa do problema. Um dia ele percebeu que estava sentindo as dores dos pacientes terminais.
Depois que o personagem mudou o seu trajeto de casa para o trabalho, as dores passaram, mas ele passou a sentir uma terrível angústia, que lhe pesava como um rochedo sobre o peito, e uma coceira sem fim. No novo itinerário, havia uma delegacia de polícia com as celas superlotadas. Ele estava sentindo o remorso dos criminosos e a sarna que se espalhou como epidemia no cárcere.
Após mudar mais uma vez o caminho de todos os dias, achou que iria morrer quando sua coluna cervical parecia estar sendo rompida ao meio por um instrumento metálico. A dor vinha de uma clínica de abortos, localizada numa das ruas que ele escolhera.
Chegou um dia em que não adiantou mais mudar o caminho. O personagem de nossa crônica sentia ondas de medo sem o menor motivo, até descobrir que era o medo das crianças violentadas à noite ou das famílias durante a guerra. Não foi nada fácil passar pela experiência de ser um escudo humano para terroristas.
Quando esse medo foi embora, veio uma sede insaciável que lhe queimava a língua e a garganta; era a sede dos viciados em crack e dos bêbados com delirium tremens. Certa vez, uma tristeza levou semanas para ser identificada; era a tristeza dos invejosos, torturados pelo sucesso alheio. Por mais que ele tentasse fugir ou divertir-se, a solidão dos órfãos órfãos de pais e órfãos de filhos o perseguiu e abateu durante dias e noites, como uma serpente persegue e abate sua presa.
Na madrugada de uma quinta-feira, nosso personagem acordou sem sentir nada. Ouviu baterem à porta. Abriu-a, não era ninguém. Mas na porta estava escrito um símbolo desconhecido. Ele não sabia, mas era "nun", a letra árabe com que estão sendo marcadas as casas dos cristãos no Iraque e na Síria. Então ele começou a compreender a dor que o Filho sentiu no Horto das Oliveiras.
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