O Brasil esteve perigosamente perto de uma crise institucional sem precedentes na história recente na semana passada, no impasse entre Senado e Supremo Tribunal Federal a respeito da permanência de Renan Calheiros (PMDB-AL) na presidência da casa legislativa, com direito a um ato explícito, por parte da Mesa do Senado, de desobediência a uma decisão judicial. Após o pleno do STF derrubar a liminar de Marco Aurélio Mello, chegou-se a pensar que os atritos estavam contidos, até porque tanto Legislativo quanto Judiciário se aproximavam de seus recessos de fim de ano.
Mas eis que o conflito aberto que parecia mais distante pode retornar. Na quarta-feira, Calheiros mostrou que não estava blefando quando disse que pretendia votar ainda nesta semana o projeto de lei sobre abuso de autoridade. O texto, repleto de erros e imprecisões que atam as mãos de juízes e procuradores, parecia destinado à gaveta após o STF manter Calheiros à frente do Senado, mas a denúncia contra o senador oferecida na segunda-feira pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, acendeu no peemedebista alagoano o mesmo desejo de vingança que já tinha movido os deputados que desfiguraram as Dez Medidas Contra a Corrupção. Felizmente, na sessão de quarta vários senadores criticaram a pressa de Calheiros e, por fim, o presidente do Senado tirou o tema da pauta do dia.
Pelo andar da carruagem, a grave desobediência promovida por Renan Calheiros terminará impune
Na mesma noite, uma nova atitude colocou lenha na fogueira do conflito entre poderes: o ministro do STF Luiz Fux determinou, em liminar, que o projeto das Dez Medidas, que estava no Senado (e que Renan também tentou fazer votar em regime de urgência logo após sua aprovação na Câmara), voltasse para as mãos dos deputados.
O centro da polêmica é a absurda “emenda da meia-noite” que instituiu crimes de abuso de autoridade para juízes e promotores. Segundo Fux, as Dez Medidas eram um projeto de iniciativa popular, nos termos do artigo 61 da Constituição. E o Regimento Interno da Câmara dos Deputados prevê que tais projetos sejam apreciados diretamente pelo plenário, sem passar por comissões, conforme determinam os artigos 24 e 252 do Regimento. No entanto, o projeto das Dez Medidas foi “apropriado” por quatro deputados, que o apresentaram como sendo de sua autoria – uma prática que Fux critica. Por esse raciocínio, a tramitação das Dez Medidas teria sido errada desde seu início. O ministro continua, alegando que, sendo as Dez Medidas um projeto de iniciativa popular, não poderiam sofrer emendas que as desfigurassem, muito menos que representassem o oposto daquilo que a população desejava ao endossá-las com milhões de assinaturas.
A argumentação de Fux, no entanto, tem pontos fracos. Ninguém questionou o fato de o projeto das Dez Medidas ter sido apresentado por quatro deputados, em vez da iniciativa popular; assim, ele ficou sujeito ao trâmite normal. Além disso, o Regimento da Câmara não tem nenhuma proibição explícita a emendas no caso de projetos de iniciativa popular. E, por fim, a própria ideia da “intocabilidade” de tais projetos seria uma restrição à atividade do Legislativo, cujas funções incluem a discussão de projetos de lei, com as alterações que os deputados julgarem necessárias.
Por isso, não surpreende que a liminar tenha sido vista como nova interferência indevida do STF no Legislativo, especialmente porque as Dez Medidas ainda não tinham encerrado sua tramitação: era (e é) teoricamente possível que, num surto de bom senso, os senadores retirassem os pontos nefastos do texto e o devolvessem à Câmara. E o presidente Michel Temer pode vetar trechos se o texto chegar ao Planalto.
Senado e STF estão brincando com fogo nesse vaivém de ataques. As crises institucionais mais perigosas são aquelas para as quais não existe solução institucional e legal previamente definida, pois essas podem conduzir à anomia. Veja-se, por exemplo, que a grave desobediência promovida por Calheiros e a Mesa Diretora do Senado, pelo andar da carruagem, terminará impune, abrindo um perigosíssimo precedente em que tudo fica permitido. No tiroteio entre poderes, a democracia corre o risco de levar uma bala perdida.
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