A coletiva convocada pelo presidente Michel Temer no fim de semana, depois da enorme pressão da opinião pública, pode ter colocado um fim na gambiarra dos parlamentares que pretendiam aprovar a anistia ao caixa dois na Câmara dos Deputados. Mas a palavra de Temer – e dos presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) – tem de ser encarada com aquele ceticismo típico de São Tomé: é preciso ver para crer. E, ainda por cima, a promessa não coloca o país a salvo de novas investidas contra a Operação Lava Jato e contra o sistema investigatório e punitivo brasileiro. Há em curso uma nova tentativa para salvar os políticos envolvidos nesse e em outros amplos esquemas e que, apesar da reação da sociedade ao papelão de quinta-feira passada, pode ser incluída nesta terça-feira na votação das Dez Medidas Contra a Corrupção.
Sob o argumento de que ficam muito expostos e sofrem desgaste perante a população, os deputados articulam a volta da “emenda Amin”, uma proposta de limitar a duração de investigações de crimes praticados por políticos eleitos e que, se aprovada, vai dificultar operações como a Lava Jato. Como o prazo seria de apenas seis meses, prorrogáveis por outros seis, todo o esforço das autoridades para desvendar crimes complexos como o esquema do petrolão poderia se tornar inócuo, favorecendo corruptos e contribuindo para a degradação das instituições.
A palavra de Michel Temer, de Renan Calheiros e de Rodrigo Maia tem de ser encarada com aquele ceticismo típico de São Tomé
Afinal, a maior operação contra a corrupção já deflagrada neste país caminha para completar três anos e ainda não concluiu os inquéritos envolvendo autoridades. Se a “emenda Amin” fosse aplicada à Lava Jato, muitos dos políticos envolvidos poderiam se safar – o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou, em março do ano passado, abertura de investigação contra 22 deputados federais, 12 senadores e um vice-governador, mas até agora, passado mais de um ano e meio, não houve conclusão da maioria dos inquéritos. Não bastasse a justificativa equivocada – afinal, a exposição é um ônus inerente à vida pública e precisa ser suportada por aqueles que decidem seguir carreiras políticas –, é inadmissível a implantação de medida que certamente vai gerar impunidade.
Mas a ressurreição da “emenda Amin” – que chegou a ser incluída durante a tramitação do projeto das Dez Medidas na comissão especial, mas foi retirada posteriormente – não é a única artimanha dos promotores da impunidade em causa própria. Eles recorrem também à chantagem pura e simples. Um parlamentar disse à reportagem da Gazeta do Povo que há pressões e ameaças: caso não votassem em favor das raposas, deputados sem relação com esquemas de corrupção seriam incluídos nas delações premiadas dos colegas que fossem pegos. A reputação dos delatados ficaria manchada e, até serem inocentados, o estrago já estaria feito. Claro, é uma estratégia arriscada, pois o delator precisa comprovar o que diz para conseguir os benefícios associados à colaboração; mas pode-se esperar qualquer coisa de quem já tentou manobras como incluir a anistia explícita no projeto das Dez Medidas.
A mobilização da semana passada, que uniu a sociedade e os deputados comprometidos com a lisura na política, tem de continuar. As artimanhas que vêm sendo gestadas nos bastidores do Congresso Nacional soam ainda mais infames. De nada adianta o presidente da República e os dois chefes do Legislativo federal virem a público e assumirem um compromisso contra “qualquer proposta que vise à chamada anistia”, como afirmou Temer, se estiverem de acordo com outros acintes igualmente imorais e intoleráveis.
Somente uma má compreensão sobre a intensidade e o conteúdo da “voz das ruas” irá permitir que essa medida ultrajante, assim como outras que vêm sendo discutidas no Congresso, sejam aprovadas. Os parlamentares parecem não ter se dado conta da gravidade da crise política e econômica que o país está vivendo. Mas, se eles não a perceberem por conta própria, a sociedade fará questão de deixar isso bem claro.
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