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editorial

Nós e os pobres

A grita está instalada. Comerciantes e moradores do Centro de Curitiba não escondem sua insatisfação diante do suposto aumento da população em situação de rua. Apontam os acampamentos embaixo das marquises e praças como a Rui Barbosa. Reclamam a ação do poder público. O assunto foi tratado em matéria da Gazeta do Povo de 8 de março , e pede cautela.

Nem toda impressão merece ser cravada nas Tábuas da Lei. Os cadastros da Fundação de Ação Social superam os 4 mil nomes, 3 mil atendimentos anuais e espelham uma verdade que só resta encarar: a geografia humana do “povo da rua” – expressão firmada pelos movimentos sociais – mudou, e bastante, desde que o crack se tornou uma epidemia. Aos alcoólicos, solitários crônicos, empobrecidos ao extremo, vítimas de sofrimento mental e trecheiros, entre outros, somam-se jovens dependentes da classe média, homens e mulheres disfarçados da sanha de traficantes. São muitos os que rejeitam os préstimos da ação social, justamente por não se verem como objeto dela. Estariam na marquise de passagem, à espera de que finde o mau momento.

As igrejas, congregações religiosas, organizações comunitárias em geral deram lugar a macroestruturas de atendimento. Foi um desperdício de recursos diminuir em tamanha monta essa participação da comunidade

Em resumo, o que antes parecia um cenário simples de explicar virou um novelo de lã, como de resto os demais dramas brasileiros. Para atender a essas e novas demandas, aprimoraram-se, em todo o país, as práticas de atendimento. A palavra de ordem é descentralizar – deixando para o passado os grandes albergues impessoais. No lugar, pequenas casas de acolhida, nas quais haja atendimento personalizado. E reconhecer que a categoria “morador de rua” não é uma massa em que todos estão no mesmo estágio. Colocar toda noite, debaixo do mesmo teto, homens e mulheres que começam a vencer suas tragédias e aqueles que ainda estão em fases agudas de dependência, por exemplo, equivale a passar o rolo compressor, condenando todos a não sair do lugar. É difícil para eles, mas difícil ainda para quem se acostumou a esse modelo viciado.

É conhecido o trabalho da Fundação de Ação Social em fazer vingar as diretrizes nacionais. As casas de acolhida foram implantadas, à revelia da insatisfação dos vizinhos. Hoje há seis unidades de atendimento, seis pontos de atendimento, fora os convênios com ONGs. As táticas de inserção da população de rua no mundo do trabalho e o retorno à família, igualmente, ganharam impulso. Mas não há milagres. Nem estratégias de convencimento instantâneas, capazes de aplacar o ânimo dos descontentes. Estamos num hiato.

Não há como pulverizar os pobres – eles fazem parte da urbe, como todo o resto. Mesmo nas cidades mais desenvolvidas do mundo existem moradores de rua. Resta assumi-los como um fato social nesse país de capitalismo tardio e capenga, cuja dívida social, há pelo menos 200 anos, extrapolou os limites da moralidade. O momento de tensão pede um armistício, posto que a implantação de uma nova política leva tempo. Em paralelo, passa da hora de a sociedade organizada entender que a mendicância não é um problema a ser primariamente resolvido pelo Estado e pela gestão municipal, mas pela própria comunidade.

É possível entender o mal-estar da população. Sente-se impotente diante de tanta gente exposta ao sereno e às sobras da lata de lixo. Daí o clamor. Mas deve-se lembrar que essa impotência tem sua origem, em parte, nas próprias políticas de Estado. São possessivas. Uma das máximas repetidas por aí é que “os pobres no Brasil têm dono”. A posse se deu nos últimos 20 anos, tempo em que mais e mais o Estado tomou para si as políticas de amparo e inclusão. Profissionalizou-as. Deu-lhes status e ciência. Por outro lado, exilou dessa faina importantes parcelas da sociedade, que por décadas deram seu quinhão na assistência social. As igrejas, congregações religiosas, organizações comunitárias em geral deram lugar a macroestruturas de atendimento. Foi um desperdício de recursos diminuir em tamanha monta essa participação da comunidade.

Se não eram de todo perfeitas, essas iniciativas pelo menos permitiam a mulheres e homens da classe média o contato próximo – e a troca de conhecimento – com o povo da rua, o que em muito contribuía para quebrar o isolamento de ambas as partes. Pena esse modelo ter se tornado tão tímido, debaixo da alegação de que era assistencialista e lhe faltava competência técnica. Valem duas sugestões em meio a essa onda de insatisfação – que se dê um voto de confiança às novas políticas, pois nasceram de um árduo debate no movimento social; e que os seus gestores não exilem o cidadão comum dessa convivência. De fora, ele se sente impotente. E descontente. Resta-lhe dar esmolas, quando poderia fazer muito mais.

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