As cenas de carnificina em penitenciárias em Manaus (AM) e Boa Vista (RR) chocam, mas não são inéditas. Antes delas, houve Pedrinhas (MA), Urso Branco (RO) e Benfica, no Rio – para citar apenas alguns casos de repercussão nacional, pois rebeliões em que os presos matam rivais dentro da cadeia são, infelizmente, ocorrências cuja frequência é bem maior do que desejaríamos. Algumas explicações para a barbárie, no entanto, resvalam para o simplismo e para a desconsideração total do caos na segurança pública em que o cidadão brasileiro é obrigado a viver.
Não há a menor dúvida de que a superlotação dos presídios é uma circunstância que favorece as rebeliões e as situações de guerra interna entre facções. Mas, quando a superlotação é explicada com frases como “a polícia prende demais”, estamos diante de uma inversão óbvia da realidade. Costuma-se justificar a afirmação dizendo que o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo e mesmo assim registra altos índices de criminalidade. Mas pode-se realmente dizer que “a polícia prende demais” em um país no qual a regra é a impunidade? A série de reportagens “Crime sem Castigo”, da Gazeta do Povo, mostrou que, entre 2004 e 2013, apenas 23% dos homicídios registrados em Curitiba resultaram em processo e 4% terminaram em condenação. Ora, se há tantos homicidas, assaltantes, estupradores e traficantes (para ficar apenas nos crimes mais graves) à solta, a polícia prende pouco, e não muito.
Se há tantos homicidas, assaltantes, estupradores e traficantes à solta, a polícia prende pouco, e não muito
Uma questão diversa é a estrutura que existe para julgar e punir criminosos. Não faz sentido que presos que aguardam julgamento sejam colocados lado a lado com criminosos condenados. Não se deveria jamais deixar na mesma cela um homicida e um condenado por um furto ocorrido sem violência ou ameaça à vida da vítima. Mas essas situações objetivas de injustiça são a realidade de muitos presídios, seja porque o Judiciário não tem a estrutura adequada para julgar rapidamente, seja porque não há instalações suficientes para promover a separação de presos, seja porque a própria legislação penal não adota o princípio da proporcionalidade ao estipular as penas para cada crime. Esses são fatores que o poder público pode e deve resolver, pois o resultado da omissão nesse campo todos sabemos: presos amontoados em celas, muitos dos quais poderiam estar em um regime mais brando, cumprir penas alternativas ou usar aparelhos como tornozeleiras eletrônicas – e apenas por esse prisma faz sentido a crítica da secretária nacional de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, à “cultura do encarceramento”, entendida como a tendência a endurecer penas de prisão de forma indiscriminada.
Isso nos leva a outro clichê, aquele que contrapõe presídios e escolas, como se a sociedade tivesse necessariamente de escolher entre estas e aqueles. Assim como precisamos de mais e melhores escolas, precisamos, também, de mais e melhores presídios, onde os criminosos sejam devidamente separados por fatores como periculosidade e idade e possam cumprir sua pena com um mínimo de dignidade. Bem sabemos aonde essa falsa dicotomia – que ainda joga a culpa pela criminalidade na baixa instrução, na pobreza ou na falta de oportunidades, o que qualquer empreiteiro da Lava Jato pode desmentir – nos levou: nem nossas escolas públicas melhoraram (e estão aí os resultados do Pisa para comprovar), nem as cadeias deixaram de ser panelas de pressão prontas para explodir.
Quando o criminoso é condenado, deveria pagar por seu crime com a privação da liberdade e a impossibilidade de convívio com os seus – de preferência, trabalhando e estudando dentro da cadeia. O disfuncional sistema prisional brasileiro proporciona outra realidade: a superlotação, a violência interna e o ócio destrutivo extrapolam o sentido da punição, “compensada” com indultos, circulação livre de telefones celulares e outras regalias. Sem uma reformulação total, os bandidos continuarão aterrorizando a população fora das cadeias e seus rivais dentro delas.