Há tédio pela repetição do foguetório, estouro de espumante, desejos secretos, abraços de ano-novo. A correria para cumprir o horário, a contagem dos segundos faltantes acompanhando a tevê ligada. Coisa sem graça! Todos os dias são absolutamente iguais. Nos trópicos, nem a variação com quatro estações. Em alguns lugares, quando muito, pouca chuva ou muita chuva. Nada muda. Não há o novo, apenas dias e noites consumindo a energia de quem existe. Uau, que estraga-prazeres!
Todos os povos fazem contagem do tempo baseada nas estações e, nessa sucessão, alguma quantidade de auroras lunares ou solares. É preciso referenciar os acontecimentos, mas daí a dizer que há novidade vai distância que as festas de saudação do ciclo anual tentam encompridar.
Quem nunca se entendeu muito bem fica junto na mesma sala na expectativa da mágica que mude tudo de um minuto para o outro, literalmente. Ano novo, vida nova, dizem os mais otimistas. O ranzinza está ali no meio de toda aquela festa quando alguém começa a cantar "adeus, ano velho, feliz ano novo, muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender". Os parentes olham para ele que está em silêncio com ar de cobrança, de exigência de que também cante. Ai, meu Deus! É o sofrimento máximo. Para não ficar com fama pior do que já tem, desafina algumas estrofes e foge para a varanda imaginando escapar da torrente brega.
Na varanda, é envolvido numa discussão sobre previsões astrológicas. Tem a impressão inicial de que é jocosa a conversa e solta, em tom de gozação, a furada previsão maia do fim do mundo. Basta para alguém dizer, em tom indignado, que houve erro de interpretação e que os incrédulos não serão salvos pelos extraterrestres que virão para selecionar quem deve ser encaminhado para o mundo superior, na dimensão diáfana. Sem retrucar, o ranzinza diz a primeira coisa que lhe vem à cabeça: vocês viram as predições dos búzios, tarôs e runas? Em 2013 morrerá um artista famoso, um jogador de futebol vai reconhecer a paternidade de filho, o casamento de um ex-BBB acabará e uma periguete vai siliconar o corpo para o carnaval. É importante prestar atenção porque eles acertam sempre. O clima desanuvia e as pessoas conversam sobre oráculos, ciganas, pais de santo. O ranzinza, mais uma vez, sai à francesa depois de entrar à polonesa, tropeçando em gafes.
Amuado num canto, bebericando espumante quente numa tacinha plástica, o ranzinza fica pensando no ano novo chinês, vietnamita, judeu, muçulmano. Se todos celebram, por que não celebrar também? Quase se entrega a esse pensamento quando se lembra que na semana passada, no Natal, houve fogos, comilança, abraços, bons e maus augúrios. As duas festas estão ficando muito semelhantes ou é impressão errônea de quem fica com azia nessas alegrias artificiais com data marcada?
Para não atrapalhar o prazer dos outros com conversas sobre aquecimento global, sucessão de Hugo Chávez e guerra civil na Síria, o ranzinza assume o comando da pia e lava louça com sofreguidão para que o trabalho braçal o faça esquecer do mundo. Pelo menos esse réveillon será diferente: não haverá louça suja espalhada pela casa quando as pessoas acordarem de ressaca para viver a vida nova.