A violência contra população de rua cresce em números alarmantes em Curitiba. De acordo com um levantamento do Ministério Público do Paraná (MP-PR), pelo menos 24 investigações envolvendo violência - assassinatos, agressões e até mesmo um atentado com bomba - foram instauradas entre janeiro e outubro deste ano. Os casos representam o dobro dos registrados em todo o ano de 2016.
Enquanto aumentam as denúncias sobre a instalação de pinos de ferro em marquises com intuito de afastar o pernoite da população de rua, apenas neste ano dez homicídios entraram no radar dos promotores do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos. O número é o mesmo da soma dos casos registrados entre 2015 e 2016 na capital. O Movimento Nacional da População de Rua contabiliza, informalmente, pelo menos 20 mortes em Curitiba.
No último dia 31, dois homicídios investigados pelo MP-PR tiveram sentença proferida no Tribunal do Júri. De acordo com a denúncia, no dia 27 de março de 2016, na Praça Osório, “o denunciado, ciente da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, movido por inequívoca intenção de matar, dolosamente, de posse de arma de fogo, efetuou diversos disparos contra as vítimas, pessoas em situação de rua, que se encontravam dormindo na calçada da mencionada praça”.
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O crime teve natureza torpe. “Em razão de nutrir sentimento de desprezo por pessoas em situação de rua, ao passar pelo local do crime, o denunciado interpelou as vítimas dizendo que ‘moradores de rua incomodavam os proprietários dos apartamentos’”, afirma outro trecho da denúncia. O homem de 55 anos foi condenado a 20 anos e 3 meses em regime fechado por homicídio qualificado.
Violações
O Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Paraná também constatou aumento no número de violações de direito da população de rua em 2017, mas, neste caso, de cunho institucional. O órgão coleta denúncias de maus tratos, agressões e retiradas compulsórias.
Um dos casos levados até a Defensoria nos últimos meses envolve uma gestante. No dia 17 de agosto, de acordo com o relato colhido pelo órgão, “pegaram a bolsa da noticiante com os documentos e a carteira de gestante dela. Quando ela foi pedir de volta, o guarda municipal bateu na perna dela, com isso, seu marido foi defendê-la. O marido foi agredido. Assim, a noticiante e seus colegas saíram da praça [Rui Barbosa] e foram dormir” em outro lugar. Na mesma denúncia, a mulher e o marido relatam a pressão para deixar o Centro.
Esse acúmulo originou duas recomendações administrativas do MP-PR e da Defensoria Pública do Paraná: uma com 21 advertências acerca do tratamento prestado àqueles em condição de vulnerabilidade social extrema e outra sobre os limites da atuação da Guarda Municipal. Os ofícios foram entregues em agosto. Na resposta, a Fundação de Ação Social (FAS) argumentou que pelo menos 70% das ações propostas já estavam sendo implementadas.
A FAS realmente tem experimentando algumas alternativas. Nos últimos meses, a prefeitura inaugurou um espaço no Bairro Novo e autorizou a construção do Restaurante Popular do Capanema e do Centro de Referência da Assistência Social Bairro Alto. No entanto, intensificou as “buscas ativas” realizadas com base nos pedidos do 156 e fechou o abrigo Boa Esperança, no Rebouças.
As medidas geraram queixas. Os comerciantes afirmam que há uma superpopulação de rua concentrada em alguns pontos como no Mercado Municipal, que passou a receber os ex-albergados do finado abrigo, e na Praça Tiradentes. E órgãos fiscalizadores apontam que as buscas não podem ter tom de investigação criminal.
Para rearrumar a região, a FAS abrirá neste mês 160 vagas. A primeira unidade iniciará as atividades na segunda-feira, na Rua Rockfeller, e outra na última semana deste mês, na Rua Engenheiros Rebouças.
Principal problema
Pesquisadores entendem, no entanto, que a descentralização dos serviços e foco nos abrigos não atacam o principal problema da cidade: a necessidade de rever o conceito de moradia a curto, médio e longo prazo. No último dia 10, para reparar a sutura causada pelas recomendações, MP-PR, FAS e o Movimento Nacional da População de Rua sentaram à mesa pela primeira vez.
O procurador Olympio de Sá Sotto Maior Neto afirma que a reunião teve tom pacificador. “Reafirmamos a necessidade da FAS apresentar para o Ministério Público, para o Movimento, para a sociedade, um projeto estratégico para atendimento à população em situação de rua. A nossa proposta visa trabalhar imediatamente a perspectiva da moradia, do espaço, para que ele seja pensado como uma espécie de república, pessoas que administram a sua vida, obviamente com supervisão, ou a perspectiva do aluguel social”.
De acordo com Sotto Maior, essas políticas têm funcionado em lugares como Londrina e Belo Horizonte e devem ser encaradas como atualização dos abrigos. As duas políticas pretendem a oferta de autonomia. “Essas alternativas têm um custo muito menor do que manter as casas de acolhimento. Nós sabemos que até mesmo as pessoas em situação de rua rejeitam alguns abrigos. Eles são importantes para fazer aproximação, cadastro, o primeiro atendimento, mas têm que ter a ideia de permitir o autogoverno”, completa.
Professora de Direito e especialista em cidades, Giovanna Bonilha Milano afirma que as políticas habitacionais não costumam respeitar este segmento da população. “O histórico de invisibilidade fica mais evidente no que se refere ao direito à moradia”, afirma. “Construiu-se um modelo hegemônico de provisão habitacional fundado na lógica da casa própria adquirida via crédito, o que não dialoga com as condições reais da população e, muito menos, com as necessidades da população em situação de rua. Essa lógica afasta a moradia de sua identificação como direito humano. Reduz o direito à moradia ao acesso a quatro paredes”, explica.
Para o professor de Ciências Sociais da PUCPR Cezar Bueno de Lima, a rua tem o “caráter de receber indivíduos que estão fora do processo institucional, de mercado, da coisa burocratizada”. Ele também reclama do enfoque da prefeitura. ”A gestão atual vê a população como um problema. Como um grupo que precisa ser inviabilizado. Esse posicionamento reforça uma tendência da incompreensão. Não é fácil quando a cidade opta por respostas que historicamente deram errado como repressão, medo, segregação. A política não pode tornar essas pessoas inimigas. Elas já são vítimas de processos históricos que falharam”, critica.
Leonildo Monteiro Filho, ex-morador de rua, coordenador do Movimento e membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos, ligado ao Ministério da Justiça, diz que há uma preocupação em restabelecer esse diálogo com a prefeitura, que teria sido rompido nesta gestão. “A FAS escuta os grandes empresários, os lojistas, quer judicializar a questão. A prefeitura vem coibindo até mesmo entidades religiosas de atender a população com um prato de comida”, afirma.
“Além disso, tem usado mecanismos sutis de higienização. Usam como argumento a necessidade da presença de guardas municipais para falar que tem muito usuário de droga. E quem tem feito a primeira abordagem à noite é a Guarda Municipal com cassetete”, completa. A Guarda Municipal não realiza levantamento sobre apreensões de materiais ilícitos com moradores de rua.
Direito de ir e vir
Os peritos também reforçam o entendimento jurídico pacífico em relação aos direitos de permanência, que não podem ser obstaculizados. “A legislação prevê o direito de livre locomoção no território nacional, o que inclui a possibilidade de ir e vir e, evidentemente, de permanecer. Sob o princípio da igualdade, não há fundamentação jurídica que suporte o tratamento distinto. Ou seja, a possibilidade de um morador circular por sua vizinhança e permanecer em uma praça próxima à sua casa é idêntica àquela conferida juridicamente para uma pessoa que esteja em situação de rua”, afirma a professora de Direito Giovanna Milano.
“Há uma regra constitucional do direito de ir, vir e permanecer nos logradouros. Isso é oriundo da democracia, da noção de cidadania. A Política Nacional Para Pessoas em Situação de Rua, que faz parte do ordenamento jurídico de Curitiba, referenda esse direito”, afirma o procurador Olympio de Sá Sotto Maior.
Para Tamíres Oliveira, da diretoria do Conselho Regional de Serviço Social (Cress-PR), condutas contrárias, pelo menos por parte dos agentes públicos, podem ensejar, inclusive, responsabilização ética. “O cidadão deve ter respeitado o direito de permanecer com sua integridade física garantida. Nós não podemos cair no discurso extremista. Se não quer atendimento, ‘que fique abandonado ou que saia compulsoriamente’. Na assistência social se discute a autonomia do usuário, mesmo que seja de permanecer. É um trabalho de monitoramento, sensibilização. Não cabe ao serviço social cercear a liberdade”, afirma.
Gláucio Geara, presidente da Associação Comercial do Paraná (ACP), tem opinião similar, mas afirma que “direitos humanos precisam observar os dois lados”. “Os comerciantes têm reclamado muito. Nós reconhecemos que esse é um problema social, mas está havendo abuso, precisamos separar o morador de rua tradicional dos traficantes. Essa situação tem gerado desvalorização patrimonial em alguns pontos da cidade”, argumenta.
A recomendação conjunta do MP-PR e da Defensoria e uma recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos ao Estado do Paraná defendem o mesmo ponto: que [a administração] se abstenha de praticar políticas de cunho higienista, ainda que de forma indireta. A FAS afirmou que “remoções compulsórias e práticas políticas de cunho higienista, violenta, racista ou com fim segregatório não são admitidas e tampouco fazem parte das diretrizes” da instituição.
A FAS também não quis repassar dados sobre essa gestão. Os últimos levantamentos dão conta de que a prefeitura disponibiliza 611 vagas para acolhimento. O censo de 2016 afirma que a população de rua de Curitiba é de 1,6 mil pessoas. O Movimento garante que esse número pode ultrapassar 5 mil pessoas.