A epidemia alarmante do zika vírus, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti , também portador da dengue, da febre amarela e do vírus chikungunya, vem cada vez mais assumindo os aspectos de uma catástrofe de saúde pública. Mas, segundo especialistas, essa epidemia é também o exemplo mais recente de como as intervenções humanas sobre o meio ambiente, no sentido mais amplo, podem favorecer organismos portadores de doenças, como o Aedes, e os vírus que eles trazem consigo.
Esse mosquito em particular se prolifera em “habitats artificialmente criados por humanos”, diz Durland Fish, professor de doenças microbióticas e também de estudos florestais e ambientais na Yale University.
“Ele não vive no solo, nem em pântanos, ou quaisquer outros tipos de lugares onde normalmente se encontra mosquitos”, diz Fish. “Foram os humanos que criaram um habitat para que ele se proliferasse, com todos esses objetos que guardam água parada por aí, e o mosquito se adaptou tão bem... que ele na verdade é meio que um parasita humano. É como a barata do mundo dos mosquitos”.
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E, infelizmente, o que vale para o Aedes aegypti é válido também para muitas outras doenças e seus vetores – um problema de cujo tamanho, Fish comenta, o mundo ainda não se deu conta.
Isso não quer dizer que outros fatores – como pobreza, globalização e sistemas avançados de transporte, capazes de transportar não só pessoas, mas também doenças e seus vetores – não sejam igualmente importantes. Mas pesquisadores como Fish sugerem que os fatores ambientais têm sido ignorados e que, como ainda não há uma vacina disponível para o zika, eles são também uma parte crucial da solução.
Urbanização e lixo urbano
Pode-se argumentar que o mosquito Aedes vem se multiplicando graças à “degradação ambiental” em regiões-chave do Brasil e outros países, como comenta Peter Hotez, reitor da Escola Nacional de Medicina Tropical na Baylor College of Medicine. “Você vê não só pobreza, mas a degradação ambiental, lixo não coletado, pneus descartados cheios de água, áreas alagadas”, diz Hotez. Tudo isso cria habitats para mosquitos, que então espalham os vírus mortíferos.
“Há diversos outros fatores que contribuíram para a emergência do zika, mas os principais elementos têm sido o crescimento populacional humano, a falta de planejamento no crescimento urbano, a globalização e a falta de um controle eficaz de vetores”, acrescenta Duane Gubler, diretor-fundador do Programa de Pesquisa em Doenças Infecciosas Emergentes da Duke-NUS Graduate Medical School, em Cingapura.
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Leia a matéria completaÉ claro que esta não é a primeira vez que a urbanização esteve relacionada à transmissão de doenças. Uma história em particular remonta a pelo menos 1854, quando John Snow, estudando um surto de cólera em Londres, descobriu que ele estava vinculado ao despejo de esgoto no Rio Tâmisa, cujas águas depois eram usadas para o consumo da população.
A história do zika pode ser primariamente a de como certos tipos de ambientes urbanos e seus dejetos favorecem os mosquitos, mas o que é chocante é o quanto outros tipos de mudanças ambientais claramente pioram a disseminação de vetores de doenças.
A construção de barragens
Já houve muitas queixas sobre o estrago que as barragens podem causar nos ecossistemas, mas também há provas consideráveis de que elas podem alterar ambientes aquáticos para promover a proliferação de vetores de doenças.
“A construção de barragens é um dos maiores fatores na emergência de esquistossomose. A barragem da região superior do Rio Volta promoveu a emergência em massa da esquistossomose em Gana”, afirma Hotez. A esquistossomose é uma doença devastadora disseminada por caracóis de água-doce portadores de parasitas e transmitida a humanos que nadam em águas contaminadas. Barragens e outros projetos de gerenciamento hídrico podem piorar a situação, porque expõem as pessoas ao contato com esses caracóis.
“Acúmulos de água de todos os tamanhos, inclusive lagos artificiais e sistemas de irrigação, fornecem habitats excelentes para caracóis de água-doce e encorajam o contato íntimo e frequente entre a população e a água contaminada”, afirma um relatório da OMS sobre doenças causadas por caracóis.
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Leia a matéria completaA esquistossomose é uma doença devastadora, mas pior ainda é a malária – que também é agravada pela construção de grandes barragens. Pesquisas recentes sugerem que barragens na África subsaariana são responsáveis por “pelo menos 1,1 milhão de novos casos africanos de malária todo ano”, relatou Joby Warrick do Washington Post no ano passado.A água represada pelas barragens pode criar habitats para os mosquitos que transmitem malária.
Houve o caso da bacia do Rio Senegal na África Ocidental em 1987, onde houve uma grande epidemia de febre do Vale do Rift. A causa? “Uma série de modificações ecológicas no rio instituídas pelos governos da Mauritânia e do Senegal em cooperação com programas patrocinados internacionalmente”, o que incluía duas barragens, como relata Kenneth J. Linthicum e seus colegas, do Centro de Entomologia Médica, Agrícola e Veterinária do Departamento de Agricultura dos EUA.
Uma das barragens foi responsável pelo “alagamento extensivo e crescimento de vegetação” e os pesquisadores, então, observaram o cultivo humano de arroz no mesmo lugar onde grandes números de mosquitos Culex estavam se reproduzindo. Os pesquisadores concluíram que se trata de um caso clássico de como “a modificação do terreno pode contribuir para o endemismo de doenças”.
Desmatamento
E o que é válido para as represas também é para o corte e queimada de florestas, igualmente envolvidas no aumento de transmissão de doenças para humanos.
Chelsea Harvey, repórter do Washington Post, mostrou recentemente como o desmatamento, na Malásia, parece ser outro principal elemento para a transmissão de malária, na medida em que serviu para aproximar humanos e macacos, permitindo que os mosquitos ajam como intermediários entre os dois, transmitindo a doença.
E esse é só um exemplo de como o desmatamento pode piorar a disseminação de doenças. “O desmatamento tem sido um grande colaborador para a emergência de doenças, promovendo o Ebola na África Ocidental, e o Nipah e SARS no sul da Ásia”, diz Hotez.
Na África, onde a malária é mais devastadora, o desmatamento é mais uma vez cúmplice disso. Por exemplo, áreas desmatadas tendem a ser mais quentes, por conta da ausência de árvores, que diminuem a temperatura, e essas temperaturas mais altas podem afetar partes cruciais do ciclo de vida do mosquito. Assim, como relatam Jonathan Patz e Sarah Olson da University of Wisconsin, o ciclo das fêmeas do mosquito Anopheles gambiae (o vetor mortal nesse caso) no Quênia, entre elas se alimentarem de sangue e porem seus ovos, era 52% mais curto nas áreas desmatadas.
“O desmatamento e o cultivo de áreas naturalmente alagadas nos planaltos africanos cria as condições favoráveis para a sobrevivência das larvas do Anopheles gambiae, o que faz com que analisar os efeitos da mudança do uso da terra sobre o clima local, habitat e biodiversidade seja crucial para qualquer avaliação de risco de malária”, concluem os autores.
Aquecendo o planeta
É reconhecido que as doenças tropicais, como malária, dengue e febre amarela terão maior facilidade de penetrar além dos trópicos se a mudança climática aumentar a temperatura das latitudes temperadas. “Globalmente, aumentos de 2-3ºC de temperatura aumentariam em torno de 3-5%, em termos climáticos, o número de pessoas sob risco de malária, i.e. várias centenas de milhares”, conclui a OMS. “Além disso, a duração sazonal da malária iria aumentar em diversas áreas atualmente endêmicas”.
Estima-se ainda que o Aedes aegypti e todas as doenças que ele carrega se proliferem mais com o clima mais quente. “Os mosquitos da dengue se reproduzem mais rapidamente e picam com maior frequência sob temperaturas mais altas”, diz a OMS. E também existe Aedes albopictus, que transmite dengue, zika e outras doenças.
O Aedes albopictus já se espalhou por boa parte dos Estados Unidos e, como revelou um estudo sobre controle de mosquitos realizado por um grupo de pesquisadores norte-americanos de diversas agências estatais e da Rutgers University, a mudança climática deverá agravar essa disseminação: “Estima-se que as áreas com condições ambientais adequadas para as populações de Aedes albopictus irão aumentar dos 5% atuais para 16% nas próximas duas décadas e de 43 até 49% até o fim do século. No momento, cerca de um terço da população humana total dos 55 milhões de habitantes do nordeste dos EUA reside em áreas urbanas onde o Aedes albopictus está presente. Estima-se que esse número aumentará em até 60% até o fim do século, abrangendo todos os grandes centros urbanos e expondo mais de 30 milhões de pessoas à ameaça de infestações de Aedes albopictus”.
O que pode ser feito
É crucial enfatizar que, ainda que os fatores ambientais estejam implicados na disseminação dessas doenças, eles não são os únicos fatores. “Os quatro principais elementos são a pobreza, conflito, migrações humanas e fatores ambientais. E a maioria desses fatores ambientais são obra humana”, diz Peter Hotez.
Como Hotez aponta, as migrações humanas – sobretudo por avião e navio – são também responsáveis por ajudar a disseminar doenças e seus vetores em todo o mundo. O Aedes aegypti é originário da África, e o Aedes albopictus, da Ásia. Agora ambos estão por toda parte. Se contarmos a introdução de espécies invasivas em novas regiões como outra forma de dano ambiental causado pelo ser humano (e há bons argumentos a favor disso), então essa é a mais devastadora de todas, de um ponto de vista epidemiológico.
Durland Fish, de Yale, defende que precisamos prestar muito mais atenção ao modo como grandes projetos que envolvem florestas, barragens, pântanos, etc. alteram a ecologia das doenças ao alterar os habitats de seus vetores, e que precisamos pensar nas doenças a partir de uma perspectiva mais ecológica no geral.
“É importante compreender como esses simples habitats aquáticos artificiais, como eles produzem mosquitos, quais os processos biológicos envolvidos na transformação de um ovo de mosquito em um mosquito adulto”, afirma Fish sobre o Aedes aegypti. “E nós ainda não entendemos esse processo”. O pesquisador diz que o mundo médico costuma preferir tratamentos e vacinas a uma compreensão ecológica que pode levar a uma melhor prevenção.
Quando o assunto é o zika, diz Fish, “é preciso fazer algo a respeito dos mosquitos, e esse é um problema estritamente ambiental, não há qualquer aplicação médica aí. E conseguiremos um impacto melhor em proteger o público se nos concentrarmos nele como sendo, de fato, um problema ambiental”.