O Centro Estadual de Educação Básica para Jovens Adultos (Ceebja) Mário Faraco, em Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba, teria todos os requisitos para ser invisível. Funciona na PCE – a Penitenciária Central do Estado –, longe dos olhos de seus quase 3 milhões de vizinhos. Longe até mesmo de quem frequenta o presídio. Para chegar à sede da escola é preciso cruzar boa parte dos 72 mil metros quadrados da instituição. Os próprios professores e servidores – 151 ao todo – têm dificuldade em se encontrar: eles se dividem em 15 diferentes unidades do sistema, às quais chegam, não raro, cruzando estradinhas secundárias, dignas de um rally da selva. Sem falar na tensão constante, presumível por qualquer um que tenha visto um noticiário de rebelião.
Amor bandido?
As mulheres são uma minoria nos presídios, mas crescem em número e em espécie – “elas descobriram o tráfico”, dizem os educadores. E descobriram para defender seus companheiros. O passado delas não é menos trágico: quase que em sua maioria essas mulheres foram vitimizadas desde a infância.
Invisíveis
Um dos desejos expressos dos professores que trabalham no sistema prisional é conseguir que a sociedade olhe para as cadeias. Sabem que é difícil, por haver uma barreira cultural. O brasileiro financia os presídios com os impostos que paga, mas não patrulha esse investimento nem cobra resultados.
Apesar dessa soma de dificuldades, na última década o Ceebja Mário Faraco se tornou uma usina de conhecimento, merecedor de se tornar um centro de referência de “educação em cela de aula”, como se diz no meio. O colégio onde estudam 10% dos inquilinos da PCE serviu de inspiração para quatro mestrados concluídos e mais cinco mestrados e dois doutorados em andamento, além de sete pesquisas de PDE – um plano de desenvolvimento criado pelo governo Requião para alavancar a capacitação dos professores. Nem escolas como Papa João XXIII e o São Luiz alcançaram tal ranking.
Os estudos vão de como a ensinar Química e Matemática para a população prisional – há muito apartada do ensino ou nunca dele, de fato, participante – chegando a questões de fundo, como a análise dos discursos dos detentos, drogadição ou a condição da mulher atrás das grades. “Havia pouco material sobre as presidiárias, daí minha escolha”, observa a bióloga e psicóloga Ires Aparecida Falcade Pereira, doutoranda e autora de uma dissertação defendida na UFPR em 2013, a partir de entrevistas, cartas e rodas de conversa com uma dezena de presas entre 18 e 34 anos.
“Das tripas...”
A pesquisa impressiona duplamente – por convidar as detentas a falarem sobre as noções de “justiça” e “cuidado”; e por conseguir que elas o fizessem uma diante da outra, num exercício de civilidade e democracia que nunca fez parte de suas biografias, ou tampouco da rotina das grades. Tarefas assim – corriqueiras em qualquer centro de ensino – ali exigem que o professor faça das tripas coração. A logística é de guerra.
Presos em regime fechado só podem ir para a “cela de aula” acompanhados de um agente carcerário. O transporte é feito a pé, com nunca mais do que três presos de cada vez, a distâncias que podem chegar perto de um quilômetro. Contas feitas, um único agente consumiria 16 quilômetros, entre idas e voltas, para acomodar 25 alunos numa classe. Ameaças de rebeliões e a crônica falta de agentes fazem com que essas rotinas sejam quebradas, o que arruína o aprendizado.
Aprendizado de uns poucos, diga-se. A contrário do que se pensa, o sistema de ensino nos complexos penitenciários não é universal. Há fila dignas do Círio de Belém para alçar uma vaga. Hoje, dos 18 mil encarcerados no sistema prisional paranaense, apenas 1,6 mil frequentam alguma unidade do complexo “Mário Faraco”. Presos acotovelam-se – e não necessariamente por sede de saber, mas para conseguir reduções da pena.
Um depoimento sobre a liberdade e os livros num espaço prisional
Leia a matéria completaUma lenha
Há pouco mais de 15 anos, impressionava o número de presos, em geral mais velhos, que nunca tinham frequentado uma escola. Hoje, a surpresa é a juventude dos condenados – a moçada equivale a acima de 60% do total de presos e não raro é formada por um dia adolescentes aliciados para o tráfico. Some-se a fragilidade da relação dessa trupe com o sistema de ensino, pelo qual passaram não só às turras como de raspão. Mesmo com a dificuldade em conseguir uma vaga – garantia de perdão de um dia de pena para cada 12 horas de aula – a evasão chega perto de 30%.
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É uma lenha – “os professores têm de mobilizar os alunos para mostrar que a educação vai fazer diferença para ele. Esse convencimento ocorre num ambiente em que os educadores ficam separados por grades, em que um lápis precisa ser devolvido, porque pode virar arma. Ensinar nessas condições exige muita habilidade”, comenta a pesquisadora Araci Asinelli da Luz, da UFPR, ligada à educação prisional. “Às vezes, é frustrante. A gente trabalha porque acredita, mas percebe a carência deles. São oriundos de gerações privadas de tudo. A maioria vivia de bicos antes de chegar aqui. Não conheceram a escola”, complementa Ires Falcade, que organizou com Araci o livro O espaço prisional, lançado pela Appris em 2014.
Tudo isso é para dizer que quando pesquisadores do Ceebja conseguem fazer uma roda e provocar os presos e presas a falarem, venceram uma São Silvestre. “Eles são desconfiados”, observa Ires, do alto da experiência de quem encarou uma das falsas “bonanças” do sistema prisional: as mulheres. A pesquisadora estima que 70% delas foram presas pelo coração – companheiros, amantes e maridos eram traficantes e as envolveram na comercialização. Poucas mataram. Raras reincidem no crime, mas crescem em número: são hoje 7% da população carcerária.
Suas vidas rendem um filme triste: 90% são abandonadas pelos companheiros que protegeram. Eles não formam filas para as visitas íntimas. Muitas têm filhos entregues a abrigos. Mais empenhadas do que eles em não voltar para atrás das grades, contudo, a prisão lhes é mais penosa. “O presídio foi feito para os homens, não para elas”, lembra Ires, ao invocar particularidades como a menstruação e a gravidez. Dá para imaginar.
“A mulher é triplamente discriminada. Além de mulheres, são pobres e presas”, ilustra. Nas entrevistas individuais com Ires, as presas foram previsíveis. Disseram terem sido cuidadas, porque tiveram casa e comida. Declararam-se bandidas e merecedoras das agruras do cárcere. Mas nos chamados grupos focais – uma metodologia lúdica, que permite receber a fala do outro como um estímulo para rever a própria fala – a conversa ferveu. Vieram à liça relatos de abuso por parte de pais e irmãos, violência bruta e exploração sexual. “Uma delas contou ter se deitado com um homem em troca de um sapato.” São mulheres que nunca foram cuidadas. Entender isso foi um passo para a liberdade. O “Mário Faraco” faz escola.
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