M.P.M, 34 anos, em sala de aula, no Parque Agrícola da PCE. “Passei 11 anos no fechado. Já paguei o que devia. Vim por causa da remição da pena. Tenho filhos para criar e preciso sair. Gostei. Vou continuar.”| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

O Centro Estadual de Educação Básica para Jovens Adultos (Ceebja) Mário Faraco, em Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba, teria todos os requisitos para ser invisível. Funciona na PCE – a Penitenciária Central do Estado –, longe dos olhos de seus quase 3 milhões de vizinhos. Longe até mesmo de quem frequenta o presídio. Para chegar à sede da escola é preciso cruzar boa parte dos 72 mil metros quadrados da instituição. Os próprios professores e servidores – 151 ao todo – têm dificuldade em se encontrar: eles se dividem em 15 diferentes unidades do sistema, às quais chegam, não raro, cruzando estradinhas secundárias, dignas de um rally da selva. Sem falar na tensão constante, presumível por qualquer um que tenha visto um noticiário de rebelião.

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Amor bandido?

As mulheres são uma minoria nos presídios, mas crescem em número e em espécie – “elas descobriram o tráfico”, dizem os educadores. E descobriram para defender seus companheiros. O passado delas não é menos trágico: quase que em sua maioria essas mulheres foram vitimizadas desde a infância.

Invisíveis

Um dos desejos expressos dos professores que trabalham no sistema prisional é conseguir que a sociedade olhe para as cadeias. Sabem que é difícil, por haver uma barreira cultural. O brasileiro financia os presídios com os impostos que paga, mas não patrulha esse investimento nem cobra resultados.

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T.T, 33 anos, mostra a mão mutilada durante um assalto. Além da volta à escola, faz trabalhos voluntários: contas e mais contas para sair. 
Na próxima terça-feira, alunos do Ceebja Mário Faraco, na PCE de Piraquara, vão fazer o Enem. Salas lotadas para os aulões.  

Apesar dessa soma de dificuldades, na última década o Ceebja Mário Faraco se tornou uma usina de conhecimento, merecedor de se tornar um centro de referência de “educação em cela de aula”, como se diz no meio. O colégio onde estudam 10% dos inquilinos da PCE serviu de inspiração para quatro mestrados concluídos e mais cinco mestrados e dois doutorados em andamento, além de sete pesquisas de PDE – um plano de desenvolvimento criado pelo governo Requião para alavancar a capacitação dos professores. Nem escolas como Papa João XXIII e o São Luiz alcançaram tal ranking.

Os estudos vão de como a ensinar Química e Matemática para a população prisional – há muito apartada do ensino ou nunca dele, de fato, participante – chegando a questões de fundo, como a análise dos discursos dos detentos, drogadição ou a condição da mulher atrás das grades. “Havia pouco material sobre as presidiárias, daí minha escolha”, observa a bióloga e psicóloga Ires Aparecida Falcade Pereira, doutoranda e autora de uma dissertação defendida na UFPR em 2013, a partir de entrevistas, cartas e rodas de conversa com uma dezena de presas entre 18 e 34 anos.

“Das tripas...”

A pesquisa impressiona duplamente – por convidar as detentas a falarem sobre as noções de “justiça” e “cuidado”; e por conseguir que elas o fizessem uma diante da outra, num exercício de civilidade e democracia que nunca fez parte de suas biografias, ou tampouco da rotina das grades. Tarefas assim – corriqueiras em qualquer centro de ensino – ali exigem que o professor faça das tripas coração. A logística é de guerra.

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Presos em regime fechado só podem ir para a “cela de aula” acompanhados de um agente carcerário. O transporte é feito a pé, com nunca mais do que três presos de cada vez, a distâncias que podem chegar perto de um quilômetro. Contas feitas, um único agente consumiria 16 quilômetros, entre idas e voltas, para acomodar 25 alunos numa classe. Ameaças de rebeliões e a crônica falta de agentes fazem com que essas rotinas sejam quebradas, o que arruína o aprendizado.

Aprendizado de uns poucos, diga-se. A contrário do que se pensa, o sistema de ensino nos complexos penitenciários não é universal. Há fila dignas do Círio de Belém para alçar uma vaga. Hoje, dos 18 mil encarcerados no sistema prisional paranaense, apenas 1,6 mil frequentam alguma unidade do complexo “Mário Faraco”. Presos acotovelam-se – e não necessariamente por sede de saber, mas para conseguir reduções da pena.

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Uma lenha

Há pouco mais de 15 anos, impressionava o número de presos, em geral mais velhos, que nunca tinham frequentado uma escola. Hoje, a surpresa é a juventude dos condenados – a moçada equivale a acima de 60% do total de presos e não raro é formada por um dia adolescentes aliciados para o tráfico. Some-se a fragilidade da relação dessa trupe com o sistema de ensino, pelo qual passaram não só às turras como de raspão. Mesmo com a dificuldade em conseguir uma vaga – garantia de perdão de um dia de pena para cada 12 horas de aula – a evasão chega perto de 30%.

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É uma lenha – “os professores têm de mobilizar os alunos para mostrar que a educação vai fazer diferença para ele. Esse convencimento ocorre num ambiente em que os educadores ficam separados por grades, em que um lápis precisa ser devolvido, porque pode virar arma. Ensinar nessas condições exige muita habilidade”, comenta a pesquisadora Araci Asinelli da Luz, da UFPR, ligada à educação prisional. “Às vezes, é frustrante. A gente trabalha porque acredita, mas percebe a carência deles. São oriundos de gerações privadas de tudo. A maioria vivia de bicos antes de chegar aqui. Não conheceram a escola”, complementa Ires Falcade, que organizou com Araci o livro O espaço prisional, lançado pela Appris em 2014.

Sede do Ceebja Mário Faraco, na Penitenciária Central do Estado (PCE), em Piraquara. Escola é uma das pioneiras no gênero no país. Foi criada em 1982. Por mais de uma década, professores ali locados não recebiam formação específica e se sentiam estigmatizados. As mudanças vieram nos anos 2000, quando o setor de Educação da UFPR passou a desenvolver capacitações no centro. Detalhe: sede fica em meio a um casario antigo, dos tempos em que a PCE era uma fazenda. “Seria um paraíso, não fosse um presídio”, faz trocadilho a diretora Ana Beatriz Tozzatto, sobre o encanto do local.
A bióloga e psicóloga Ires Aparecida Falcade Pereira começou sua carreira no magistério em uma escola rural de Capanema, no Sudoeste do Paraná. “Sempre gostei de desafios”, diz, sobre sua escolha pelo sistema prisional, no início dos anos 2000. Pesquisadora utiliza técnicas como a escritura de cartas, no empenho em ajudar presas a falarem de suas próprias vidas. “Elas não foram cuidadas, nunca”, comenta. No momento, Ires estuda as relações entre as condenadas e o tráfico. “Temos de ganhar confiança. Elas são desconfiadas. Preciso mostrar o tempo todo que estou aqui para ajudá-las.”
A professora de Educação Física Ana Beatriz Tozzatto, atual diretora do Ceebja Mário Faraco, na PCE de Piraquara, assistiu, em uma década, à transformação da “escola esquecida” em centro de referência nos estudos prisionais. Professores que trabalham em escolas comuns, mas que enfrentam a violência e os efeitos do tráfico, acreditam que a experiência desse ceebja possa ajudá-los. A rotina de Ana Beatriz é agitada - os 151 professores e servidores que coordena transitam em 15 unidades escolares diferentes dentro do sistema.
Uma das 15 unidades educacionais que funcionam dentro da PCE é o Parque Agrícola. Da sede do ceebja até ali é preciso ir de carro e passar por cancelas. A vigilância é severa. Apenas na Colônia Agrícola, outra unidade, são 1,2 mil presos. Apesar de todo esse aparato, a maior parte dos presidiários ainda é privada do direito à escola. Há filas para conseguir uma vaga - fila que aumenta porque permite a remição da pena. Mesmo assim, muitos desistem. “É preciso ganhá-los para o ensino. O empenho de um professor que atua em ‘celas de aula’ é duplo”, observa a pesquisadora Araci Asinelli da Luz, do setor de Educação da UFPR, atuante nesse campo desde o início dos anos 2000, quando passou a oferecer cursos de capacitação no “Mário Faraco”. “À época, fiquei impressionada com minha ignorância sobre como funciona uma escola nessas condições”, ilustra Araci.
Professor de Matemática em pleno “aulão de véspera”, na última quinta-feira, no Parque Agrícola da PCE. Alunos se preparam para o Enem, na próxima terça-feira. No melhor do estilo Paulo Freire, educador usa os cálculos de remição de pena - não raro complicados - para ajudar estudantes a aprenderem se valendo de um dado da realidade que lhes interessa.
Horários de aulas são os mais variados. Tudo é muito particular. Alunos deprimidos às vezes faltam às aulas. Ou resistem em se entregar ao aprendizado. “Estou aqui por causa da remição. Não quero aprender. Sou bandido”, disse um deles a Ires Falcade. Tempos depois, fez um curso técnico, hoje trabalha e mandou agradecimentos expressos à professora que não desistiu dele. “Era doído vê-lo escondido atrás de um capuz, mostrando que não queria estar ali. Muitos vêm para sair do ócio, da angústia de ficar parado”, ilustra Ires.
Sala cheia na última quinta-feira.
O acompanhamento na “fase 1”, para os menos escolarizados, tem de ser carteira a carteira, aluno a aluno.
Embora o grau de escolaridade dos presos tenda a crescer , pelo menos 40% dos detentos vêm de uma exposição muito pequena à escola. “Antes de chegar aqui, confesso, não imaginava que houvesse tanta gente no Brasil que nunca tinha passado por uma escola”, comenta Ires Falcade.
L.M, 37 anos, usa camiseta do Grêmio e se prepara para o Enem. “Minha vida daria um livro”, diz, ao contar que foi criado num orfanato, que morou fora do país e que se considera injustiçado pelo sistema prisional. “Perdi minha família. Ninguém quer mais saber de mim por causa dessa prisão”. Em meio à revolta, admite que evoluiu graças a sua entrega ao sistema de ensino: tem 12 cursos do Senai; soma 10 livros lidos e resumidos - o que ajuda na diminuição da pena, sendo quatro dias por livro lido. “Acelerei de tarde e de noite, estudando sem parar”. Contabilidade final: 10 meses e 11 dias de remição.
Cena de uma tarde de estudos de M.P.M., 34 anos. Ele tinha a antiga quarta série quando chegou ao sistema prisional. Começou a estudar em 2007 e está perto de concluir o ensino médio. “Falta o Inglês”.
M.P.M., 34 anos, camisa do Paraná Clube, não sabe faculdade qual quer fazer (“talvez Veterinária, talvez Agronomia”), mas garante que cursará uma “para mostrar que sou capaz, a quem duvidou de mim”. Ele tem a revolta típica do ambiente prisional. Depois de 11 anos de prisão, acredita que já pagou tudo o que deve à Justiça. Diz que precisa voltar para o Sudoeste do Paraná, pois tem filhos para criar.
T.T., 33 anos, usa camisa da Seleção da Itália. Bom falante, não esconde sua origem classe média, num bairro tradicional de Curitiba. A vida foi perdida para o crack, droga que o teria levado à criminalidade. Ele agita os olhos muito verdes no afã de contar tudo o que lhe aconteceu - e por que a escola se perdeu no meio do caminho. “Estudei no Guaíra e no Rio Branco”. O jovem conseguiu viver cinco anos como foragido, tempo que iniciou um trabalho voluntário em comunidades carentes. Um dia entendeu que não poderia mais viver assim - procurou uma delegacia e se entregou. “O juiz foi compreensivo e me permitiu o semiaberto e a escola.”
O.E.D. tem 42 anos, é londrinense e, num mundo perfeito, seria um atleta profissional. Na juventude, fez carreira como corredor de 100 metros, fundista. Ou, quem sabe, militar. Serviu em Brasília, agraciado pela altura. Os primeiros desacertos vieram quando tinha 16 anos, mas se agravaram aos 22 anos, quando começou a assaltar para comprar drogas. Preso, encarou a rotina de estudos. Em três anos passou da quinta série ao terceiro ano do ensino médio. Quer cursar Educação Física, mas seu objetivo é se tornar missionário, pregar pelo mundo. Depois da remição, quer se redimir pela fé.

Tudo isso é para dizer que quando pesquisadores do Ceebja conseguem fazer uma roda e provocar os presos e presas a falarem, venceram uma São Silvestre. “Eles são desconfiados”, observa Ires, do alto da experiência de quem encarou uma das falsas “bonanças” do sistema prisional: as mulheres. A pesquisadora estima que 70% delas foram presas pelo coração – companheiros, amantes e maridos eram traficantes e as envolveram na comercialização. Poucas mataram. Raras reincidem no crime, mas crescem em número: são hoje 7% da população carcerária.

Suas vidas rendem um filme triste: 90% são abandonadas pelos companheiros que protegeram. Eles não formam filas para as visitas íntimas. Muitas têm filhos entregues a abrigos. Mais empenhadas do que eles em não voltar para atrás das grades, contudo, a prisão lhes é mais penosa. “O presídio foi feito para os homens, não para elas”, lembra Ires, ao invocar particularidades como a menstruação e a gravidez. Dá para imaginar.

“A mulher é triplamente discriminada. Além de mulheres, são pobres e presas”, ilustra. Nas entrevistas individuais com Ires, as presas foram previsíveis. Disseram terem sido cuidadas, porque tiveram casa e comida. Declararam-se bandidas e merecedoras das agruras do cárcere. Mas nos chamados grupos focais – uma metodologia lúdica, que permite receber a fala do outro como um estímulo para rever a própria fala – a conversa ferveu. Vieram à liça relatos de abuso por parte de pais e irmãos, violência bruta e exploração sexual. “Uma delas contou ter se deitado com um homem em troca de um sapato.” São mulheres que nunca foram cuidadas. Entender isso foi um passo para a liberdade. O “Mário Faraco” faz escola.

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