Há um mês, cerca de 40 moradores da Sociedade Barracão nome oficial de uma pequena favela do Boqueirão entraram num ônibus fretado, acompanhados de funcionários da Companhia de Habitação de Curitiba, a Cohab-CT, e viajaram 25 quilômetros até o Ganchinho, num dos extremos da Zona Sul. Estavam a bordo senhoras com o peso da idade, jovens casais e algumas crianças. Pela janelinha, descobriram o Parque Iguaçu 3, loteamento popular onde serão construídos 83 casas e 560 sobrados, para os quais a comunidade deve ser transferida. Poucos gostaram do que viram.
Esse tipo de tour não é de praxe. Basta pensar que de 2006 para cá a prefeitura já reassentou 2.538 famílias, sem maiores liturgias. Mas sobram motivos para tamanha deferência com essa comunidade pobre entre tantas. A Sociedade Barracão se tornou um símbolo da luta pela moradia na capital. E a depender do que disserem seus condôminos, a temperatura do setor tão alta quanto a do movimento sem-terra pode atingir índices insuportáveis. Pelo que tudo indica, é o que está para acontecer.
Com exceção de dois passageiros os irmãos Rogério Carlos, 21 anos e William de Almeida, 19 , ambos jovens e sem ligação com o principal ramo de atividade do grupo, a coleta de papel, todos os outros passageiros disseram "não" à Cohab, abalando as negociações iniciadas em 2004. Em terra, a reportagem identificou mais quatro moradores favoráveis ao reassentamento. E só.
As mudanças, contudo, têm a urgência de um teto desabando. O terreno onde os carrinheiros estão beira o estopim da bomba: pertence a uma massa falida e ostenta condições sanitárias dignas do Juízo Final. Para ajudar, conhecida como balcão de ideias sustentáveis, a comunidade tem sido abalada pela criminalidade. Há quem se queixe do cheiro da maconha nos domínios da favela. E quem contabilize oito assassinatos em 11 anos de ocupação.
Apesar do pé-firme, é provável que os moradores mudem de ideia, como adiantaram duas assistentes sociais da Cohab ouvidas pela reportagem. "No começo, é normal não aceitar. Além do mais, eles viram o terreno, não as casas. O Iguaçu não é um bairro ainda. A ideia é ajudá-los a criar uma cooperativa no novo endereço", comenta a assistente Terezinha More. Mas, pelo que tudo indica, a operação Boqueirão-Ganchinho não vai ser nenhuma festa da cumeeira.
Favela de bolso
A Sociedade Barracão foi formada há 11 anos, soma 150 moradores, de 36 famílias, sendo 62 crianças. Ocupa uma categoria única entre as 254 ocupações irregulares da capital, onde vivem 207.754 mil pessoas, 54 mil famílias. De tão pequena, é o que se poderia chamar de uma "favela de bolso", ou "favela pocket", classificação que não consta nos anais das companhias de habitação. Mas bem podia.
Como tamanho não é documento, o espaço diminuto com 1,7 mil metros quadrados divididos em uma esquina favoreceu a mobilização dos moradores. A fama veio a galope: primeiro com o registro em cartório do nome "sociedade", o que fez toda a diferença; em segundo, acreditem, por uma questão estética.
Até três anos atrás, quando um desabamento seguido de um incêndio abalou a arquitetura do local, os casebres da Sociedade Barracão ficavam uns sobre os outros. A pilhagem era "um número": garantia um pátio no meio, usado para reciclagem, um puxadinho reservado à Igreja do Nazareno e espaço para dois automóveis avariados.
A originalíssima favela acabou chamando a atenção de ONGs como o Cefúria, Terra de Direitos e Despejo Zero, virando tribuna dos movimentos sociais. O interesse era claro: caso se transformasse num lugar de moradia digna, a associação serviria de prova de que é possível abrigar os mais pobres em áreas urbanizadas e em imóveis subutilizados, conforme reza o Estatuto da Cidade, promulgado em 2001.
A publicidade em torno da Barracão foi tanta que, arrisca, tenha levado muita gente a se abalar até as ruas O Brasil para Cristo com José Maurício Higgins, apenas para conferir a favela erguida dentro de uma fábrica abandonada a Tecnicom Máquinas e Peças Industriais, que quebrou no final da década de 1990, dando início à história da sociedade.
O local não tardou a ganhar inquilinos, atraídos por um desses negociadores inominados do mundo sem-teto: eles arrebanham famílias e lucram uns vinténs em cima da ocupação. Depois somem sem deixar rastro. Aqui é que entra o acaso: a turma reunida por "Nego" e "Sadi" era boa de briga e decidiu que os três lotes do Boqueirão seriam mais do que um trampolim para a casa própria: seria a própria.
Houve quem duvidasse. Tudo concorria para o despejo: a massa falida da Tecnicom foi formada, uma juíza assinou a reintegração de posse e a prefeitura deu início à assistência social, sinal de que o caminhão da mudança estava por perto. Mas nada disso fez com que a turma do Barracão aceitasse a consolação de uma casinha de alvenaria em alguma rebarba de Curitiba.
A postura "daqui ninguém me tira" causa espanto. Até gestores públicos tarimbados se perguntam por que aquela gente insiste em morar espremida, em condições sanitárias lastimáveis e sujeita à rejeição da vizinhança. Afinal, o programa "Minha Casa, Minha Vida" nasceu para salvar a nau dos miseráveis ergue casas de R$ 28 mil, com carências de mensalidade que podem chegar a dois anos e mensalidades que nunca ultrapassam 20% da renda.
A resposta sai na ponta da língua. A favela não está entre as melhores mas o outro lado da rua melhora a cada dia. Para os que ainda não se situaram, a Sociedade Barracão fica na margem Sul da Linha Verde, de frente para a Estátua da Liberdade da Havan. Em sua redondeza há duas creches e duas unidades de saúde, além de boas escolas públicas.
Tão bom quanto é a oferta de matéria-prima. Basta dar algumas pernadas até a Avenida Salgado Filho. Em miúdos, a área está a anos-luz dos reassentamentos da Cohab, onde coletar papel, plástico e alumínio é tão difícil quanto encontrar um oásis no deserto. E oferece ganhos secundários aos carrinheiros, aspecto nem sempre contabilizado pelos analistas de habitação.
Os limites entre o Boqueirão e o Uberaba estão longe de ser um Ahú ou Los Angeles, mas melhoraram muito com o empuxo econômico da classe C. A turma do Barracão encontrou famílias amigas nos sobrados, das quais ganha caixas de leite, roupas e comida. Sair dali é sair perdendo. São as regras da informalidade.
A conversa no ônibus pôs tudo isso às claras. Os membros da Sociedade Barracão têm baixa instrução, mas fazem contas com as solas dos pés. Ir e vir da nova casa até o "emprego" lhes exigiria 50 quilômetros diários de maratona, carregando, não raro, 100 quilos de papel. "Ninguém tem reciclável nas bandas do Ganchinho. Do que é que a gente vai viver?", diz Eledir Rodrigues, 45 anos, uma das líderes. "O Parque Iguaçu 3 deveria ser um cemitério", provoca o coletor Josmar Narciso, 28. "Vamos resistir", avisa, ao descer na Rua José Maurício Higgins, sua casa.