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 | Foto: Daniel Castellano – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Daniel Castellano – Arte: Felipe Lima

O amor de Sérgio Rötte Leinecker e Ilda Rossa surgiu numa Missa do Galo, na Igreja do Bom Jesus do Cabral. Era 1956. O padre nem bem anunciara a natividade do Menino Deus quando Sérgio pegou na mão de Ilda. Deve tê-la congelado com seus olhos de um azul cristalino, importado das terras estrangeiras de Prudentópolis, onde nasceu. "Eu tinha medo dele", conta a mulher, sobre aquele moço "diferente" com quem passou a paquerar.

Sérgio era do tipo que adivinhava até pensamentos. Sabia o que a guria diria antes mesmo de as palavras saírem da boca. "Você não está bem. Eu sei. É cistite", avisou-lhe, numa das inúmeras vezes em que a curou de enfermidades com um simples toque de mão – as mesmas mãos que a fizeram se sentir escolhida naquela noite de Natal.

Quase seis décadas se passaram. O medo já passou, mas Ilda continua a não entender os poderes fantásticos do marido. Nem ele. "É natural", resume Sérgio, com sofreguidão. Tem 83 anos e vive exilado num apartamento, onde se recupera de dois AVCs, agora debaixo dos cuidados da mulher a quem conquistou ao som de Noite Feliz.

Presumo que ao longo da vida tenha tentado se proteger da fúria quase obscena dos que querem milagres. Não conseguiu. Em 1962, arrumou emprego de balconista na Farmácia São Dimas, no coração da Pracinha do Novo Mundo. O local não poderia ser mais perfeito para abrigar um fenômeno digno dos anais da parapsicologia. A freguesia encostava no balcão, dava as mãos a Sérgio, e deitava ali os sofrimentos do corpo e da alma. Não raro, o desabafo dava prejuízo. "Tome um chá de laranjeira", dizia ele, fazendo encalhar os analgésicos.

A Pracinha do Novo Mundo, hoje mutilada depois de sucessivas barbeiragens urbanísticas, era então o espaço público mais importante da Zona Sul de Curitiba. Já abrigava, então, os Calçados Schier e as baratíssimas "lojas dos turcos", chamarizes para gente de tudo que é canto da cidade. A chegada de Sérgio à farmácia só fez turbinar o movimento do comércio.

O massoterapeuta Dirceu Moura, 50 anos, o "Tico", era então um piá pobre de vila quando viu estacionar um ônibus vindo do Vale do Ribeira, apinhado de gente sedenta por um toque do "seu Dimas", como o balconista também ficou conhecido. O encontro de Tico e Sérgio, aliás, é uma página encantada. "Éramos duas pessoas em busca de alguém. Deu certo. Encontrei nele um pai", lembra.

O garoto logo começou a trabalhar na farmácia e a assistir ao entra e sai de gente com dores nas costas, espinhelas caídas, bicos de papagaio e gastrites à prova dos melhores mingaus... Havia quem entrasse se sentindo com uma trave na cabeça e saísse pronto para dançar a tarde inteira nos salões do Clube Literário.

O ritual, diga-se, nada tinha de sobrenatural. Sérgio punha a mão no antebraço de quem o procurava, fitava-lhe nos olhos e se punha a ouvir. Escutou muito sobre doença, mas também sobre briga de casal e desaforos de sogras. O agonizante saía curado só de soltar os bichos. Não raro, acabava gargalhando das piadinhas de salão destiladas pelo atendente.

Suspeito que fazer rir era sua estratégia para aviar as lamúrias: ele era dado a jejuns e orações, é verdade, mas tinha pressa de rosetar pelo bairro, onde as mãos que saravam passavam a ser usadas para acenar para a multidão de conhecidos. Hoje quem faz as peregrinações pelo Novo Mundo é Tico, encarregado de levar lembranças para o pai postiço, aposentado em definitivo de seus poderes.

Permanece o mistério sobre os dons de Sérgio Rötte Leinecker. Já o tomaram por espírita, líder da Renovação Carismática, paranormal, benzedeiro. Não se vê em nenhum desses papéis. Não o classifiquem. Seu traje por meio século foi o avental com a logo da Farmácia São Dimas, e ponto. Em sua bula deveria estar escrito apenas "um homem bom. Sem contraindicação".

Em tempo. A idade, a diabetes e a Vigilância Sanitária em seus calcanhares fizeram com que Sérgio se retirasse para o regaço de Ilda e da filha do casal, Elizete. Tico permanece no balcão da pequena Farmácia São Dimas. Não passa dia sem ouvir alguma história de curas ali operadas. Quanto à Pracinha do Novo Mundo, claro, continua morrendo de saudades do passado. Para esse mal, por ora, não há remédio.

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