A estudante de Medicina Veterinária Débora Kozoski de Carvalho, 19 anos, adotou faz poucos meses o "nome social". Está em fase de teste. E "de risco". Diferente da maioria das pessoas trans, que entra nos ambientes já com a nova identidade construída, ela estava matriculada na faculdade com o nome masculino. De um semestre para outro, voltou com nome feminino, pegando de surpresa professores e colegas.

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Houve quem se afastasse, um mestre teimou em chamá-la como antes, a coordenadora mostrou dificuldade em lidar com o assunto. Em paralelo, Débora experimentou a humilhação de ter de se explicar para um sem-número de pessoas no ambiente acadêmico, como se tivesse cometido um delito. Seus interlocutores alegam "rigor acadêmico" e que "pode dar processo". Sabe-se que para evitar bullying, é fácil conseguir nas escolas que um aluno não seja chamado pelo sobrenome "Pinto", por exemplo. E as trans não desfrutam do mesmo conforto.

"Esperava bom senso, mas como me preparei, não me espanta o que tenho de enfrentar", conta. Os preparos começaram ainda na adolescência. Houve a fase das conversas em família, seguidas da hora da verdade. O mundo "quase" acabou e para que isso não acontecesse, aceitou fazer análise, passando por nada menos do que seis terapeutas diferentes e incontáveis caixas de antidepressivos. Sem falar na enxaqueca que parecia ter vindo para ficar, em especial na hora de enfrentar a fúria dos parentes. "Isso é coisa do capeta", disparou uma tia.

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"Fui superpaciente – há um estigma de que as trans são pessoas que só pensam em sexo. Atrapalha a compreensão. Mesmo assim, tive alguns ganhos: consegui que minha mãe me chame pelo ‘nome social’", festeja Débora. Se na esfera privada ganhou respeito em casa, na esfera pública conquistou uma vaga no Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais, o Cepatt, iniciativa da Secretaria de Estado da Saúde. Ali – junto a outras 70 pessoas – deu início à terapia. De acordo com a Justiça, sem o acompanhamento e o diagnóstico médico a estudante não pode fazer cirurgia de adequação sexual nem pedir a mudança do nome civil – processo que costuma emperrar na burocracia quando requerido antes da operação. "É um começo. Ainda estou no escuro. Não sei como será daqui pra frente. E na hora do emprego?"

Sem manual

A analista de sistemas Érika Macedo, 34 anos, está apta a responder a Débora. Nortista, chegou a Curitiba faz quatro meses, onde vive todos os tropeços de Victor ou Victoria, o famoso filme estrelado por Julie Andrews. A terapia hormonal começou faz três anos, aos poucos. Houve quem nem percebesse. Mudar-se para o Sul fazia parte da estratégia de recomeço – mas Érika mal podia imaginar a dificuldade na hora de conseguir trabalho.

"Não sei se sou dispensada pela minha condição ou se não fui bem no teste. O mundo do trabalho não está preparado para receber a pessoa trans. Numa entrevista de emprego, além da função, tem de falar de sua vida pessoal", explica, abrindo a ferida de uma outra faceta do "nome social" – a dificuldade de fazê-lo valer nas seleções para vagas. "Está difícil para todo mundo", amenizou uma atendente, dias desses, ao perceber o constrangimento de Érika – "para gordos, para os mais velhos, para os negros", enumerou. Mas a situação dela é pior: nenhum dos discriminados é obrigado a se expor tanto, nem os ex-presidiários, cujo passado é protegido por lei.

Tentou de tudo – foi vestida de homem numa das entrevistas. Ouviu uma gracinha: "Mudou para cá atrás de uma curitibana?". Ser um homem delicado é um impeditivo. Que dirá a condição trans. Já lhe aconselharam a se apresentar como mulher e contar a verdade depois do processo encaminhado, na hora de mostrar a documentação. Tentou. O processo de contratação foi estraçalhado. "Teria de trabalhar com o público e a empresa temia a reação dos clientes."

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De todas, a experiência mais conturbada foi quando aceitou a ajuda num ciber café e a atendente espalhou 600 currículos de Érika, especificando por própria conta e risco que "ela" era "ele". Não viu a cor de nenhuma resposta, como era de se esperar. Resignada, foi fazer curso de escova progressiva. Saiu-se bem, até se entristecer. Pós-graduada em Sistemas Móveis, com experiência, tem direito a ser o que é: "Estamos todas condenadas a trabalhar em salão de beleza?"