Há exatos sete dias, o bairro Uberaba, em Curitiba, viveu uma tragédia anunciada. A morte de oito pessoas, na maior chacina já registrada em Curitiba, levou a região às manchetes. Ao misturar num mesmo ponto a ausência do Estado, miséria, falta de oportunidades, desestruturação familiar, drogas, desigualdade social, ausência de identidade social e problemas urbanísticos, o resultado foi fatal. Os ingredientes explosivos estão presentes nas periferias das grandes cidades do país, dizem os especialistas, e a capital paranaense não foge disso.
"A violência não é típica da pobreza, mas nasce da sociedade com problemas de valores e com vulnerabilidade social. Essa é uma população à mercê de aventuras. Elas se inserem em aventuras para sobreviver ou em busca de uma identidade social", afirma o doutor em Sociologia e professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Lindomar Wessler Bonetti. "Nós nos acostumamos a olhar e achar normal uma periferia, com pessoas morando sem condições, sem esgoto, transporte coletivo", diz.
Ocupando uma área de 14 quilômetros quadrados no leste da cidade, o Uberaba concentra uma infinidade de regiões diferentes e complexas. Falar apenas em Uberaba não ajuda a entender de fato o que ocorreu lá. Para isso é preciso ir mais fundo, até o epicentro da tragédia, no Bolsão Audi/União, um complexo formado por sete vilas numa área de 1,6 quilômetro quadrado, delimitada pela Rio Iguaçu e pela via férrea de um lado e pela BR-277 e Avenida das Torres de outro.
Com uma população estimada em 10 mil pessoas, o Bolsão complexo que compreende as Vilas Yasmin, Solitude II, Icaraí, Alvorada II, Audi, Jardim União e União Ferroviária começou a ser invadido em 1998 e, em pouco tempo, se tornou uma das maiores áreas de ocupação da capital paranaense, reunindo ex-moradores de outros cantos da cidade, da região metropolitana, do interior do Paraná e de outros estados.
Mesmo com a proximidade e uma ocupação quase que concomitante, as várias vilas, porém, foram se desenvolvendo de forma diferente e adquirindo peculiaridades. Duas delas são peças fundamentais para entender como se desenhou a chacina que pôs em alerta a comunidade e levou Curitiba ao noticiário policial nacional.
Jardim União x Icaraí
A rixa é antiga e conhecida. Quem mora no Bolsão Audi-União sabe que é risco de morte atravessar a linha inimiga. De um lado, o Jardim União, com 798 famílias, casas alinhadas, lotes bem definidos e ruas desenhadas. Do outro lado, numa área de cavas, o Jardim Icaraí, com 687 famílias, barracos sobrepostos, becos, ausência da rede de luz e de água, material de reciclagem espalhado e uma população que depende, em 90% dos casos, do lixo recolhido em Curitiba. Entre as duas vilas, encontra-se a União Ferroviária, espécie de terreno neutro.
A desigualdade social entre as duas vilas uma de ocupação ordenada, outra desordenada acirrou os ânimos dos habitantes. A disputa de pontos de comércio de drogas, quando o crack chegou para ficar, piorou a situação. De repente, quem era de um lado deixou de passar para o outro. "Esses meninos do tráfico têm a minha idade, brincávamos todos junto quando éramos crianças. Agora eles estão se matando", diz Jéssica (nome fictício), 20 anos, moradora do Jardim União desde os onze.
Os jovens são os que comandam o tráfico na região e também os que matam e morrem. Entre os oito mortos na chacina, cinco tinham entre 15 e 25 anos e dois tinham 29 anos. Havia também um bebê de 5 meses. Entre os seis suspeitos do crime, a faixa etária é igualmente baixa: 18 a 25 anos. Wagner Jayson Pascoal, o "Nardão", segundo a polícia o mandante da matança e chefe do tráfico do Icaraí, tem 23 anos.
Para o sociólogo especialista em violência Júlio Jacobo Waiselfiscz, da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla), esse perfil tem eco no cenário nacional. De 35 milhões de jovens, cerca de 20% não estudam e nem trabalham, lembra ele. A escassez de condições econômicas favoráveis, ausência de educação e oportunidades para o jovem da periferia acaba suscitando a busca pela reconhecimento por um via diferente: a violência. "É o caminho fácil para o jovem ter respeito em uma sociedade que cobra realizações", explica.
É aí que se desenvolve a busca pela identidade social, lembra Bonetti. "Sem vínculo familiar, empregatício, como esse jovem se sente morando praticamente na rua, em situação de favela?", pergunta. "Ele existe apenas quando tem uma arma em punho", afirma o delegado federal e secretário municipal Antidrogas de Curitiba, Fernando Francischini.