Um fóssil de 120 milhões de anos que foi levado para fora do Brasil em circunstâncias misteriosas (e provavelmente escusas) é o primeiro exemplar conhecido de uma serpente primitiva com quatro patas, afirmam os paleontólogos que o estudaram.
A descrição da espécie extinta está na edição desta semana da revista especializada “Science”. O trio formado pelo britânico David Martill, pelo americano Nicholas Longrich e pelo alemão Helmut Tischlinger afirma que a criatura, achada no lugar que hoje é a chapada do Araripe (interior do Ceará), traz evidências de que as cobras surgiram a partir de um grupo de lagartos que viviam em tocas no chão.
Essas serpentes primevas, segundo eles, caçavam pequenos vertebrados por meio da técnica da constrição ou seja, enrolando-se em torno deles para esmagar a presa, mais ou menos como fazem as jiboias de hoje. De fato, o fóssil foi preservado com restos de um animalzinho (talvez um sapo ou lagarto de pequeno porte) em seu intestino.
É possível ver claramente pequenas patas dianteiras e traseiras no fóssil, batizado de Tetrapodophis (“serpente de quatro patas”, em grego). Apesar de minúsculos, os membros podem ter sido funcionais -talvez fossem úteis para agarrar parceiros durante o acasalamento, propõem os paleontólogos.
Cocô de peixe
Embora o bicho fosse terrestre, ele acabou se fossilizando circundado por inúmeros flocos de fezes de peixe petrificadas. É que, durante a Era dos Dinossauros, o Araripe era uma região costeira repleta de lagunas de água salobra. “Achamos que o corpo pode ter sido levado para dentro dessas lagunas por rios. Por outro lado, muitas cobras sabem nadar, então não é impossível que ela tenha pulado dentro d’água em busca de presas”, diz Martill.
Além das serpentes propriamente ditas, diversos grupos de répteis e anfíbios, como as anfisbenas e as cobras-cegas, perderam um ou dois pares de membros ao longo da evolução, mas detalhes como a estrutura dos dentes, da mandíbula e da espinha do espécime levaram os paleontólogos a propor que se trata mesmo de uma cobra quadrúpede.
Segundo Longrich, uma das partes mais importantes da anatomia do bicho é a estrutura flexível da coluna vertebral, em especial as mais de 150 vértebras do pescoço e do tronco (que são diferenciadas, embora para o observador não treinado tudo pareça a mesma coisa, claro).
“São mais vértebras do que as que existem em lagartos sem patas, o que sugere que elas não são apenas uma adaptação para rastejar”, diz ele. “A alta flexibilidade e o grande número de vértebras significam que essas serpentes eram capazes de matar presas por constrição [esmagamento].”
Nem todos os especialistas estão convencidos, no entanto. O paleontólogo argentino Sebastián Apesteguía, da Universidade Maimónides, estudou algumas das cobras fósseis mais primitivas do mundo, e diz ter dúvidas sobre o parentesco da Tetrapodophis.
Os indícios ligados aos dentes e às vértebras “não são definitivos”, afirma ele. “Honestamente, o que mais me leva a considerar que se trata de uma serpente são as impressões de escamas no ventre”, pondera Apesteguía.
Outras características do fóssil poderiam indicar que o animal era uma forma primitiva de anfíbio, talvez aparentados às cobras-cegas, segundo o pesquisador. “Com isso, a importância do fóssil não seria menor, embora as implicações fossem diferentes.”
O colecionador
O trio que descreveu a espécie afirma que a Tetrapodophis passou décadas nas mãos de um colecionador particular antes de ser repassada para um museu na Alemanha, e que não havia registros detalhados sobre como e quando ela foi obtida por seu dono original. O problema é que, desde 1942, fósseis brasileiros são considerados bens da União por lei e não podem ser comercializados.
“É altamente improvável que esse material tenha saído daqui pelas vias legais”, resume Alexander Kellner, paleontólogo do Museu Nacional da UFRJ, no Rio, e autor de dezenas de pesquisas sobre os fósseis do Araripe. “A tentativa de negar isso não vai convencer ninguém.”
Por outro lado, Kellner diz que não é o caso de simplesmente condenar os paleontólogos estrangeiros. “A ciência não tem fronteiras. Eu responsabilizo diretamente o DNPM [Departamento Nacional de Produção Mineral, que fiscaliza a extração de fósseis] por cercear o trabalho de pesquisadores brasileiros sérios, por situações como essas”, diz ele, que teve problemas com o órgão anos atrás, mas afirma ter agido de acordo com a lei.
Martill se defende dizendo que tentou ser recebido pela embaixada brasileira em Londres e buscou permissão para trabalhar com fósseis do país, mas nunca obteve resposta. Segundo ele, as leis sobre fósseis do Brasil são “ridículas, e parecem xenofóbicas”.
Já Longrich afirma que, da maneira como as coisas funcionam hoje, muitos fósseis do Araripe acabam sendo destruídos por pedreiras sem ser estudados. Ambos se dizem favoráveis a devolver a Tetrapodophis a instituições brasileiras no futuro, mas que isso depende do museu alemão onde está o material.
Procurados pela reportagem, o DNPM e a embaixada do Brasil em Londres não se pronunciaram até as 16h desta quinta-feira (23).
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