A proposta de cobrança no SUS é uma ideia desbaratada que não resolve nada. Politicamente é um desastre e conceitualmente é um equívoco: é radicalmente oposta ao que está na Constituição. Significa mais uma tentativa de colocar sobre as famílias brasileiras o ônus do financiamento da saúde."
A análise é do médico José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde (2007-2010) no governo Luiz Inácio Lula da Silva. Atual diretor-executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, ele diz ter ficado em estado de choque quando leu sobre o pacote encaminhado pelo Senado ao Planalto, que recebeu elogios do ministro da Fazenda.
“Quando vi a proposta, achei que estava delirando, voltando aos tempos da ditadura militar, com ideias desse tipo, como as de Leonel Miranda [ministro de 1967 a 1969], que propunha a privatização de toda a saúde brasileira”., diz Temporão, 63, à reportagem.
Para ele, o projeto soa mais como uma provocação do governo em relação à saúde pública. Não há ninguém no setor que sustente uma proposta que é absolutamente nefasta para a saúde no país. Lembra que, há uma semana, um congresso do setor pediu o aprofundamento no financiamento à saúde.
Na sua visão, a questão do financiamento da saúde pública necessita mudanças estruturais. Tem a ver com financiamento da seguridade social, com uma reforma fiscal e tributária, com imposto sobre grandes fortunas, com impostos sobre produtos que afetam negativamente a saúde pública, como fumo, bebidas, pesticidas, motocicletas."
Também crítico à ideia de pagamento no SUS, o economista Carlos Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), identifica na proposta mais um movimento no sentido da mercantilização da saúde pública no país.
“Introduzir a prática de compra e venda de serviço dentro do SUS significa realinhar os incentivos econômicos dos prestadores. A literatura mostra que se acaba criando uma dupla porta e se oficializa uma qualidade diferenciada: quem paga tem acesso mais rápido e melhor dentro do sistema”, declara.
Autor de SUS, o Desafio de Ser Único (Fiocruz, 2012), Ocké-Reis, 48, afirma que a experiência mostra que as políticas de co-pagamento são insuficientes e geram receitas irrisórias para o financiamento da saúde. O objetivo é refrear a demanda. É mais uma política de contenção de custos do que de apropriação de receitas.
Na sua opinião, a cobrança é ineficaz como política de arrecadação e representa “um completo desastre para a equidade, pois amplia desigualdades”.
Nesse momento de aumento no desemprego e redução da massa salarial, a tendência é de que as famílias tenham dificuldade em permanecer nos planos de saúde, observa. Para ele, o governo deveria adotar medidas de reforço nas políticas sociais e de saúde, e não o contrário.
“O governo deveria entender a política de saúde como uma política anticíclica, fazendo com que as famílias gastassem menos com saúde”, defende. Gasto público maior com saúde também ajudaria a reduzir a inflação do setor de serviços, com impacto na taxa total. “Reduzir os gastos das famílias com saúde, por meio de oferta pública, é outra forma de ataque à inflação”, ressalta.
O economista enfatiza que o setor de saúde no país é cada vez mais concentrado, oligopolizado e internacionalizado. A taxa de retorno tem sido extremamente atrativa. Não é à toa que o governo recentemente abriu esse mercado. Há interesse das operadoras internacionais no Brasil.
De acordo com ele, entre 2003 e 2011, o lucro líquido na área cresceu duas vezes e meia em termos reais, já descontada a inflação. É um setor extremamente rentável, cuja margem líquida de lucro, no agregado, está entre 10% e 20%", diz.
Ocké-Reis identifica na própria abertura a estrangeiros sinais do retrocesso na saúde. “Isso escancara um setor que nem está regulado internamente. Não se discute os efeitos dessa internacionalização do ponto de vista do padrão de qualidade, dos prestadores médicos, da relação do púbico e do privado. Não se analisa seus efeitos sobre a internacionalização no balanço de pagamentos”, alerta.
Ele fala de outro aspecto na questão do financiamento ao setor: a renúncia fiscal dada aos planos de saúde. Conta que acabou de concluir um trabalho com a Receita, apurando um total de R$ 10,5 bilhões de renúncia fiscal (R$ 6,5 bilhões na pessoa física e R$ 4 bilhões na pessoa jurídica).
“Isso poderia ser reduzido e o dinheiro ser transferido para o SUS na atenção primária e baixa complexidade”, sugere.
Já o ex-ministro Temporão ressalta o fato de o custo privado ser a parcela maior no financiamento total da saúde. “É o contrário da Inglaterra, que tem um sistema universal, onde 85% do total são gastos públicos. Aqui 52% são privados. Isso afeta principalmente as famílias mais pobres, que têm que pagar para acesso a tratamentos e medicamentos que não conseguem obter na rede pública. Uma proposta desbaratada como essa [da cobrança] agrava essa situação”, ressalta.
Para ele, há uma contradição central. “Temos um sistema que constitucionalmente se obriga a prover saúde para todos os brasileiros, de maneira universal e igualitária, com uma base de financiamento no qual a maior parte é privada. Sem uma profunda mudança nessa estrutura de gasto, ou seja, sem uma radical ampliação do gasto público, não vamos sair desse impasse”, afirma.