O diálogo entre o ferrador de cavalos Serafim e o mártir da gramática Aldroando Cantagalo é um dos mais cômicos no conto O colocador de pronomes, de Monteiro Lobato. Na tabuleta de Serafim estava escrito "Ferra-se cavalos" e não "Ferram-se cavalos", forma defendida por Aldroando, pois, conforme orientação consolidada nas gramáticas tradicionais, "cavalos" é o sujeito do enunciado, o que obrigaria o ajuste do verbo no plural. Serafim contesta tal raciocínio e explica que "cavalos" não pode ser sujeito, já que ele é a pessoa (sujeito) que ferra os animais. O "se" de "ferra-se" é a abreviação do nome Serafim: Ferra Serafim Cavalos ou Serafim Ferra Cavalos. O "se" serve para omitir, para esconder o sujeito.
Manuel Said Ali não foi um mártir da gramática, nem ferrador de cavalos. Foi um dos maiores estudiosos da nossa língua. No clássico Dificuldades da Língua Portuguesa, demonstra de forma consistente que, em construções do tipo vende-se, coloca-se, aluga-se, precisa-se, necessita-se, contrata-se, o "se" exerce a função de agente indeterminado, independentemente de o verbo ser transitivo direto ou indireto. Trata-se de "fórmulas destinadas a calar o nome do agente".
Portanto, não faz sentido dizer que em "ferra-se cavalos" a palavra "cavalos" desempenha o papel de sujeito. Tem-se, na verdade, um complemento, um objeto. Conclusão: o verbo fica mesmo no singular.
Em outras palavras, é mais lógico admitir que construções como essas dizem o óbvio: alguém ferra cavalos, alguém aluga uma casa, alguém necessita de uma babá, uma firma contrata mil encanadores. Se houvesse a necessidade de explicitar o sujeito do anúncio, nossa língua oferece outra estrutura: "A empresa X contrata dez encanadores" e "Eu ferro cavalos".
A excepcional análise de Said Ali, ecoada por filólogos como Evanildo Bechara e Celso Pedro Luft, é lógica e penetrante. E está aí para desafiar os mártires da gramática.