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Cristovão Tezza

A cor do ônibus

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Numa passagem de A sociedade dos indivíduos, o pensador Norbert Elias lembra que a liberalização de alguns costumes ocidentais do século 20, como a maior exposição do corpo da mulher – pernas e braços nus, partilhando o mesmo espaço público dos homens – exigiu também um maior autocontrole de comportamento masculino. O processo civilizador que começava a igualar homens e mulheres nas praias, nas escolas, nos escritórios e até mesmo no Exército, esse mítico baluarte masculino, teve de lidar com o "perigo sexual" da proximidade, supostamente sujeita a riscos graves em culturas repressivas.

Não foi um processo simples, mas, pelo menos para efeitos legais, acabou vitorioso. Hoje, até o movimento gay está próximo de conquistar a mesma "ocupação pública", por assim dizer. Completa-se o que seria a vitória iluminista da ideia de uma condição humana universal, vencendo o terror das diferenças, dos preconceitos, das opressões religiosas, sexuais e políticas. Nessa metáfora da felicidade, que é uma bela fantasia histórica, poderíamos enfim dizer: estamos livres.

O problema é que essa afirmação do indivíduo continua uma fantasia. Padrão de cultura, padrão econômico e padrão religioso são em toda parte realidades dissonantes e conflitantes. A globalização econômica acabou, paradoxalmente, por estimular todos os guetos, em sociedades que se dividem furiosas em modelos étnicos, raciais, religiosos e sexuais.

Também no Brasil? Vejamos. Há pouco tempo, o estupro de uma menina num ônibus na Índia soava como uma relíquia medieval de um país atrasado, em que os papéis sociais são condenações eternas, e ai de quem ignorá-las; a ideia de que negros e brancos têm de ser classificados e separados pela "raça" para efeitos de sobrevivência comum era um absurdo digno do apartheid sul-africano; salas de aula só para meninos ou meninas, um anacronismo de meio século atrás. O otimismo brasileiro, alavancado pelo crescimento, empinava o queixo, longe do atraso. Teríamos apenas problemas "sociais", que se resolvem com o aumento de consumo e truques econômicos. Dê um carro ao cidadão que ele se transformará automaticamente num lord inglês. E, no entanto, quando a gente olha a esquina de casa, erguendo a cabeça sobre a cerca elétrica, a fantasia desaba. A civilização foi ficando perigosamente para trás.

É um tema amplo demais para a cabeça do cronista. Mas uma coisa me parece clara: criar um "ônibus rosa" exclusivo de mulheres, como o projeto em curso da Câmara Municipal, por mais lógico, justo e adequado que pareça, é mais uma profunda derrota da civilização. Estamos perdendo a guerra da cultura. Com ônibus rosas circulando, vai ser difícil embarcar nos outros, mulher ou homem. A próxima etapa talvez seja a de enviar analistas à Índia, à Ruanda, ao Irã ou à Arábia Saudita para aprender mais alguns macetes de vida urbana moderna e aplicá-los aqui.

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