Acabo de fazer a viagem mais longa da minha vida. Escrevo da Austrália, mais exatamente da cidade de Adelaide, a cerca de 13 horas adiante do Brasil. O périplo me adiantou um dia vocês estão lendo esse texto ontem, digamos assim. Bem, para quem andava com uma preguiça terrível até de ir à padaria da esquina, não estou me saindo tão mal.
Como, por sorte, nunca fui preso, não me lembro de nenhuma outra ocasião em que eu tenha passado 14 horas seguidas (isso só no trecho de Buenos Aires a Sidney) no meio de completos desconhecidos, dispondo de apenas alguns metros lineares para dar uns passos de vez em quando. E pior: feliz da vida! Afinal, é rara a oportunidade de conhecer essa terra exótica e mítica. Alguém já disse que a Austrália foi o Brasil que deu certo. Segundo a lenda, também teria sido colonizada por degredados e criminosos, o que nos dá alguma esperança.
Estou aqui a convite do Festival de Adelaide, um evento que existe há 50 anos e engloba teatro (incluindo uma mostra fringe), música, ópera, dança, artes visuais e uma "semana do escritor". Enquanto a festa não começa, circulei pela cidade, incrivelmente limpa e organizada quase uma maquete. Como sempre acontece quando visito países de Primeiro Mundo, senti o choque da liberdade dos espaços públicos aqui, nem remotamente passa pelos olhos a sombra de um excluído à procura de dinheiro. No máximo, no calçadão central, músicos ou mímicos se apresentando com o indefectível chapéu no chão à espera de moedas. Fiz um programa leve: resolvi visitar o Zoológico, onde se chega caminhando, e, turista acidental de máquina fotográfica em punho, enfim vi um canguru de perto. À tarde, perambulei em torno do mercado central atrás de um restaurante australiano, e entrei num certo "Stanleys Best Aussie Fish Caf". Não entendi uma só palavra nem do que me diziam, nem do que estava escrito no cardápio. Assumindo o risco, apontei com um dedo um conjunto de palavras e acertei: veio um bom prato de peixe grelhado. A cerveja foi mais fácil decidir no Brasil me garantiram que aqui dá para escolher uma marca por dia durante meses sem repetir nenhuma. Estou conferindo.
Os australianos são os estrangeiros mais simpáticos que já conheci sempre cordiais, sorridentes, prontos a ajudar. Todos aqui têm um jeito meio alternativo de ser, como se fosse natural o paraíso comunitário que de fato construíram e continuam mantendo. Hoje fui trazido para um retiro de escritores, onde devo ficar dois dias. Entre os convidados do Festival, há vários nomes já traduzidos no Brasil, como o britânico Geoff Dyer, a ucraniana Marina Lewycka e o australiano David Malouf. E o evento literário tem como chefe o discretíssimo J. M. Coetzee, o sul-africano e prêmio Nobel de literatura que, depois de rodar o mundo, há sete anos escolheu justamente Adelaide para viver.