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Sempre que viajo, o meu lado curitibano assume o comando e eu não quero falar com ninguém. Via­­gens aproximam pessoas aleatoriamente e é grande a chance de se passar horas ao lado de um chato (ou de eu mesmo me tornar o chato incontornável, porque todos nós, sem exceção, somos potencialmente chatos, tudo depende do ponto de vista). Assim, afundo-me na leitura, o que é matar dois coelhos de um golpe só. Nunca leio tanto como quando viajo. Quando viajo, não preciso trocar a lâmpada da sala, ir ao supermercado, ler e-mail, assistir noticiário ou atender telefone.

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Aliás, essa parece a regra em viagens de avião (e não de "aeronave", como ouço cada vez mais, como se fôssemos todos funcionários da empresa) – as pessoas em geral ficam cada uma sossegada no seu canto. Bem, não é preciso ser descortês – "bom-dia" e "com licença" não fazem mal a ninguém. Às vezes a gentileza avança a um comentário sobre o tempo – o coringa universal da falta de assunto: vai chover, em Curitiba o frio é mais úmido, ano passado não teve inverno. Numa sequência inocente dessas me aconteceu de eu receber uma pergunta à queima-roupa:

– O senhor trabalha com quê?

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É a pergunta que eu mais te­­mo. Nunca sei a resposta certa. Fiquei ajeitando o cinto de segurança como quem procura descobrir detalhadamente que defeito impedia a fivela de fechar. Eu costumava dizer "professor", o que resolvia bem o problema. Tinha várias vantagens – primeiro, era verdade; segundo, atraía imediatamente a simpatia do ouvinte, en­­tremeada de uma discreta cons­­ternação (coitado, é pobre, mas o importante é a nobreza do ofício), ao mesmo tempo que em geral desestimulava novas perguntas. Sim, há o risco de a questão se desdobrar – professor on­­de, de que área, mas pelo meu trei­­no a conversa prosseguia no automático, em ritmo de cruzeiro.

Só que agora não sou mais professor. Poderia mentir e dizer que sou – o problema, então, seria mais logístico do que moral, porque pode vir a inquirição detalhadora. Quem indaga o que você faz na vida não conhece limites; pessimista, imagino as armadilhas, as pegadinhas, e eu caindo em contradição e me revelando, en­­fim, apenas um impostor rastaquera. Se eu ainda inventasse atuar na área financeira, ou ser empresário no campo da informática de ponta ou um diretor-presidente de uma clínica de rejuvenescimento, alguma coisa qualquer de impacto retórico-monetário – mas não; sem ter para onde fugir, tartamudeando uma falsa posição, preso pela cintura, fechado num tubo a dez mil metros de altitude, teria de, en­­fim, confessar que não faço nada na vida além de escrever. O homem aguardava minha resposta, enquanto eu simulava aquele problema com o cinto de segurança, mas felizmente surgiu um novo passageiro entre nós, e eu tive de me levantar para lhe dar passagem, o alto-falante anunciou alguma coisa e a vida prosseguiu, agora em silêncio.