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Minha proposta herética de que textos literários brasileiros e portugueses sejam traduzidos lá e aqui provocou uma interessante reação de al­­guns leitores, majoritamente contra a tresloucada ideia. Volto ao tema para situar um pouco melhor meu próprio ponto de vista, que se afirmou com excessiva ligeireza. Uma leitora bem-hu­­morada frisou que quem lê para se "sentir em casa" devia "restringir-se aos rótulos de Su­­crilhos e às listas de compras do sacolão". Certíssima, a leitora. Eu deveria ter acrescentado no meu texto que o leitor gosta de sentir-se linguisticamente em casa. É o charme de um verso como "Ti­­nha uma pedra no meio do caminho", por exemplo, ou de uma tradução bem feita de um autor chinês ou sueco. Uma das regras universais da boa tradução é que só se usem notas de rodapé em último caso, quando não haja mes­­mo uma expressão equivalente na língua do leitor. No mais, tudo pode ser o bom es­­tra­­nha­­mento que é a alma da boa literatura, desde que a língua entre autor e leitor seja comum.

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Outros lembraram Raquel de Queiroz, aqui, e Saramago, lá, como exemplos de recusas indignadas a mudar o texto no outro país. Mas é uma fantasia persecutória imaginar que o texto es­­taria sendo violentado por algozes cruéis, censores terríveis a corromper a força "autêntica" da linguagem, como se uma tradução lá destruísse para sempre a edição original impressa no Brasil e à disposição dos brasileiros – e vice-versa. Que seja pu­­blicado em russo, em alfabeto ci­­rílico, tudo bem – mas trocar, digamos, "Mas a minha menina está tão linda!" por "Ai que a mi­­nha cachopa está tão gira!", nem pensar! Essa atitude tem uma raiz mais psicológica que linguística – e o resíduo de um com­­plexo de colonizador e colonizado certamente exerce um papel nesse horror à tradução luso-brasileira. Além do visível desejo político de que falemos a mesma língua.

Claro, há aqui algumas premissas inescapáveis da ideia: falo de prosa contemporânea, não de clássicos e nem de poesia, que têm um outro registro – no caso dos clássicos, um registro único. E o pressuposto fundamental é que se trata de duas línguas hoje literariamente distintas, e não apenas de diferenças acidentais de vocabulário. Se estou errado nesse ponto, retiro toda minha argumentação. Sim, do ponto de vista instrumental, são praticamente a mesma língua (e por isso me agrada o conceito do acordo ortográfico); mas não se faz literatura viva com língua instrumental.

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A propósito, antes que me confundam: o que digo aqui não tem absolutamente nada a ver com o recente projeto oficial, esse sim de claro matiz lusitano, de obrigar a tradução de "palavras estrangeiras" aprovado pela Assembleia, rematado exemplo de tolice linguística e de como a lin­­guagem serve de argumento difuso para o sempre vivo desejo do Estado, e não só dele, de "vi­­giar e punir" a língua alheia.

Cristovão Tezza é escritor.