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Cristovão Tezza

O mundo redondo

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O que tem a ver o chapéu de feltro na cabeça da figura pintada na Holanda em 1658 por Johannes Vermeer, no seu quadro Oficial e moça sorridente, e o desenho animado Kung Fu Panda, dos estúdios DreamWorks, de 2008? Absolutamente nada, exceto que o feltro do quadro de Vermeer é um signo oculto de uma globalização comercial e cultural que, começando a crescer na então moderníssima república holandesa do século 17, burguesa e tolerante, acabaria por redundar séculos depois na animação que, inteiramente feita nos Estados Unidos sobre um herói chinês – um panda! –, foi um sucesso estrondoso até na própria China comunista, rendendo milhões de dólares em torno do mundo. Fazer um produto qualquer capaz de ser apreciado além-fronteiras e propiciar a sua livre circulação parece ter sido uma vocação irresistível da história humana, lado a lado com um instinto criminoso que vai custar muito ainda a considerar a própria condição humana, também ela, um produto globalizado com direitos iguais em toda parte.

O feltro do chapéu do personagem de Vermeer (um feltro que era índice de padrão de vida acima da pobretada) vinha de longe. Com a devastação dos castores na Europa, com cujo pelo se fazia o melhor feltro, os europeus foram buscá-los no Canadá, sempre atrás de um caminho fácil para a China (como ainda hoje, aliás). E, enquanto isso, trocavam-se com os indígenas locais impressionantes arcabuzes, que funcionavam com a magia da pólvora, por peles de castor que vinham em pilhas e a preço de banana. Há mais nos quadros de Vermeer: copos refinados de Murano, porcelanas chinesas, tapetes turcos e, na tela que abre esta crônica, uma incrível moça feliz e sorridente, bela e comum, conversando sozinha com um homem, sem nenhuma culpa no rosto, como num bar do século 21 – a globalização comercial holandesa incluía uma boa dose de feminismo avant la lettre.

Já o Kung Fu americano é o triunfo da cultura mainstream, a expressão inglesa que significa, grosso modo, "dominante" – produtos pensados, na origem, para públicos de massa, num primeiro momento, e para públicos mundiais, no plano seguinte. Vivemos hoje um cruzamento brutal e extraordinário (dependendo do ponto de vista) de culturas, e que só um olhar simplificado e anacrônico pode concentrar apenas no poder americano. Produzir algo que interesse ao país vizinho é arte difícil, como sabem a Rede Globo, a Al Jazeera, a Bollywood indiana ou os estúdios da Coreia do Sul; e, até hoje, só os latinos multiculturais de Los Angeles conseguem abrir fronteiras entre os latinos reais, que se odeiam.

Mas é melhor ir à fonte, antes que me acusem de plágio. Quase tudo que digo aqui vem de duas leituras fascinantes: O chapéu de Vermeer, de Timothy Brook (Record), e Mainstream – a guerra global das mídias e das culturas, de Frédéric Martel (Civilização).

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