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Cristovão Tezza

O ornitorrinco

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Há dois anos escrevi uma crônica chamada Pensamento chapado, sobre a polarização política brasileira. Eu alertava meus oito leitores que o título não se referia aos efeitos de drogas, mas ao pensamento só com dois lados. Cada um deles, como um plano telefônico, já contém um conjunto inteiro de itens, em venda casada. Assim, não dá para fazer ligação interurbana com o plano "Feliz" e ligação local com o plano "Alegre". Temos de assinar o pacote completo, que é sempre "Triste". No futebol da tevê é a mesma coisa: a única felicidade de ver meu querido Atlético na série B seria pagar menos no pay-per-view, mas foi uma doce ilusão: se queremos a B temos de levar também a série A. Este ano tem de passar logo, que o prejuízo é grande.

Pois volto ao tema do pensamento chapado.

O pensamento chapado funciona assim: se defendo a Comissão da Verdade e o levantamento dos crimes de Estado durante o período da ditadura militar brasileira, que foi assunto do meu último texto, necessariamente devo fazer parte de um pacote que inclui a defesa da presidente Dilma – aliás, da presidenta Dilma, perdão –, da estatização da economia, do governo Chávez, e assim por diante, numa cascata que termina com uma ovação ao comandante Fidel Castro.

Por outro lado, virando a chapa, se eu acho que as FARCs são um movimento terrorista e que Battisti deveria ter sido devolvido à Itália, sou, naturalmente, de direita, e portanto quero entregar a Amazônia aos imperialistas, acho que essa comissão da verdade é um revanchismo de quem mama na teta do Estado, certamente penso que a prisão de Guantánamo é ótima para segurar os militantes islâmicos, e, apertando bem, até defendo que o fuzilamento sumário de marginais é uma boa ideia e a tortura um legítimo método de investigação policial.

Parece que alguém defender o ponto de vista de que o Estado deve ser sempre responsabilizado por seus crimes, em qualquer situação ou regime político, e que por isso a Comissão da Verdade marca um momento de maturidade política do Brasil, e, ao mesmo tempo, considerar Cuba uma ditadura decrépita nas mãos de uma gerontocracia que destruiu o país, é uma contradição metafísica que colocaria alguém fora do mundo possível, fruto de alguma imaginação desvairada que cria ornitorrincos mentais inviáveis na vida real. Ou você se encaixa, ou é encaixado. Pessoas que acham que a invasão do Iraque foi um erro e um crime e que também acham que o governo nuclear-teológico do Irã é um perigo não desprezível estão "fora do esquadro"; elas não "pensam em bloco", como se dizia nos bares dos anos 60.

Como tenho horror a "pensar em bloco", acho que sou um ornitorrinco. Toda a minha vida adulta tem sido uma luta diária para fugir do pensamento chapado e dos planos telefônicos e televisivos de venda casada. Do primeiro eu me livrei; já dos segundos tem sido bem mais difícil.

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