Os escritores sempre têm mais talento que liberdade. É uma ilusão achar que, num estalo de dedos, o artista consegue mudar radicalmente a direção do seu texto, escolher seus temas e variar seu estilo. Não por acaso, há uma unidade marcante na obra de qualquer escritor Coetzee, Machado, García Márquez, Dalton, todos mantêm intacto o seu DNA literário em cada página. Porque escrever não é um meio para chegar a algum lugar, mas a própria construção do lugar, na proporção de um tijolo por palavra, dizendo com simplicidade. Não conseguimos escapar da linguagem, nossa alma visível.
Esse tema me ocorreu ao pensar na denúncia que hoje se faz a um suposto mercantilismo da literatura brasileira. Os escritores viramos todos "comerciantes", mais preocupados com o mercado que com a arte e isso é uma catástrofe, a tragédia da globalização etc.
Há nuances a considerar. A crítica parece lamentar a perda de alguma aura nobre na turbulência destes tempos. No fundo, trata-se de uma crítica mais de natureza moral que literária, um desconforto com a rápida mudança do mundo, e muito especificamente do Brasil, nas últimas décadas. E às vezes até se entrevê uma certa fantasia de que, em alguma era no passado, teria existido uma "idade de ouro" da prática literária. O que é francamente ridículo, mas pode fazer sentido à primeira vista. Vejamos alguns sintomas. Conferindo ao acaso listas de best-sellers (minha fonte é o arquivo digital da revista Veja), encontrei dez títulos brasileiros em 1974, de Erico Verissimo a José Mauro de Vasconcellos. Em 1984, o número de nativos caiu para três: Rubem Fonseca, Fernando Sabino e L.F. Verissimo. Em 1993, Paulo Coelho e só ele dominava a lista, com nada menos que quatro títulos simultaneamente. Em 2003, encontro Paulo Coelho, Verissimo e Lya Luft. E em 2013 não há mais brasileiros com a maravilhosa e surpreendente exceção, já há duas semanas, de Toda poesia, de Paulo Leminski.
Conclusão ligeira: o Brasil piorou nestes 40 anos? Obviamente, não. Saímos de uma ditadura militar para uma democracia, de uma economia fechada para uma economia relativamente aberta, de uma cultura ainda rural para uma violenta cultura de concentração urbana, de um alto índice de analfabetos para uma faixa bem maior de leitores, de uma estagnada classe média para uma emergência de milhões de novos consumidores (inclusive de livros, mas novos leitores sem tradição letrada) enfim, do artesanato de um mundo analógico para a explosão digital. Em todas as áreas passamos do bucólico conforto do quintal a um perigoso e desconhecido novo mundo. Estamos vivendo exatamente esta mudança. Quem quer que pretenda pensar o que está acontecendo com a literatura brasileira tem de considerar esse conjunto. Que já é coisa demais para a cabeça do cronista que dirá para suas poucas linhas.