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Não consigo ler nem es­­crever ouvindo música; enquadro-me na­­quele tipo de sujeito que não consegue andar e mascar chicletes ao mesmo tempo – uma coisa de cada vez, por favor. Como passo todo o tempo lendo ou escrevendo, a música foi se afastando da minha vida. Felizmente, tenho amigos que gostam de boa música e sempre me abastecem de informações atualizadas, já que eu parei lá nos anos 1980. Mas ainda não me tornei daqueles velhos furiosos obcecados pelo silêncio, e é claro que a música é sempre boa companhia quando sobra um bom tempo e uma boa conversa.

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O que está me impressionando é um fenômeno absoluto e universal: ao mesmo tempo em que a venda de cedês despenca espetacularmente no mundo inteiro, nunca a música esteve tão viva e presente na vida de todos. Claro, a popularização das trocas de arquivos pela internet, essa guerrilha digital irreversível que representou nessa faixa de consumo uma espécie de prêmio de consolação do co­­munismo sobre o capitalismo, exerceu um papel fundamental. Não gosto de chamar os copistas de piratas, porque afinal seria admitir que a maioria da população é criminosa. Mas continuo achando estranha essa multidão de marcianos andando em toda parte com fones de ouvido. Em toda parte há jovens e jovens ouvindo música, cada um na sua. Tem de tudo – desde o ca­­minhante tranquilo curtindo sua melodia secreta, até o estardalhaço do motorista kamikaze no centro do furacão de um sistema de som, rodando sozinho num volume irracional em praça pública.

Como quem assiste a um filme de Jacques Tati, gosto de ver os caminhantes plugados para tentar decifrar os tipos de autismo, na pior das hipóteses, e de legítima defesa do mundo em torno, na melhor. Alguns vão em linha reta, concentrados no som com a atenção de quem coloca uma linha na agulha; outros gingam, balançam a cabeça, mexem os braços, estalam os dedos, felizes na viagem. Já vi gente cantando a música que ouvem (acho que é a música que ouvem). Alguns gostam do som tão alto enterrado no ouvido que até mesmo os vizinhos de passeio con­­seguem ouvir – em elevadores, são figuras frequentes. Há quem ouça música e atenda celular ao mesmo tempo – mas isso já é má vontade do cronista. Confesso que nunca vi. É regra universal que ninguém deve conspirar contra si mesmo.

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Seria esse fenômeno expressão de um amor à música como jamais a humanidade conheceu antes? Que bastou a tecnologia facilitar as coisas para explodir o fato básico de que o homem é, antes de tudo, um ser permanentemente musical? Não sei. Meu amigo Matozo, que sabe das coisas mas é um pessimista renitente, diz que se trata justo do contrário – que a música nunca es­­teve tão em baixa. Para ele, ninguém ouve mais nada de fato; o que há é um desespero de distração (no meu tempo chamavam isso de "alienação") – enterrrar os ouvidos na música é apenas se desligar da realidade.

Cristovão Tezza é escritor

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