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Volto a falar desta língua dupla que nos une (do ponto de vista ortográfico), ou desta língua única que nos divide (na vida real da fala), para lembrar o que me disse o editor de uma importante editora portuguesa sobre o trânsito literário Brasil-Portugal. Afinal, por nossa história e raízes teríamos tudo para um mercado comum das letras, digamos assim, mas de fato há uma estranheza inexplicável a atrapalhar. Tirando os nomes clássicos, que passam por Eça de Queiroz e vão até Fernando Pessoa, autores portugueses não emplacam por aqui, sendo Saramago a exceção que confirma a regra – e o mesmo acontece com os brasileiros contemporâneos lá. Sim, lidos e publicados somos aqui e em Portugal, mas numa escala modesta e periférica. E o editor usou uma expressão curiosa: "Há uma resistência da língua, que é a mesma mas não é".

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Entendi perfeitamente essa resistência ao comprar no aeroporto de Lisboa o romance A vida em surdina, do inglês David Lodge, traduzido maravilhosamente para o português – de Portugal. Seria uma boa arma para enfrentar a interminável viagem de volta, para quem jamais dorme em avião, como eu. E então, página a página, preso na ótima narrativa, comecei a perceber mais objetivamente o que nos incomoda tanto, a nós e a eles. Não há a rigor uma só frase que não nos cause estranheza – tudo é familiar, mas pelo caminho espalham-se pedrinhas de sentido a desviar o rumo. Quanto à linguagem, em nenhum momento o leitor se sente em casa, e isso é mortal na prosa literária, que tem na vida cotidiana da língua a sua matéria-prima de origem. Não é só vocabulário, o que seria um problema simples – é sintaxe mesmo, os pronomes todos e seus modos de usar, campos semânticos sutilmente distintos, regências particulares que vão como que armando um novo modo de ver o mundo, tudo que metaforicamente define uma língua. Vejam um exemplo discreto: "Apercebi-me de que me esquecera do guarda-chuva, mas não voltei lá acima para o ir buscar". Ou: "Os dois miúdos também virão cá ter, por isso vai ser uma festa em grande." Mais uma: "O carro tem vidros fumados para despistar potenciais raptores, e um autocolante na janela de trás a dizer "bebé a bordo", apelando à consciência dos condutores que possam fazer tenções de lhes bater na traseira."

Como esses textos falam por si, vai a minha proposta herética: que nossa prosa contemporânea seja traduzida em edições no outro país. Não apenas no vocabulário acidental, mas na estrutura sintática mesmo, como se nós escrevêssemos em croata, e eles, em turco. Se meu livro, escrito em brasileiro, pode ser traduzido para o catalão, porque não para o português? Sei que esse é um vespeiro terrível, e temo estar a provocar serial killers linguísticos esbravejando contra meu crime de lesa-pátria. Ora pois, minha língua é minha pátria, e gosto de saber que meu leitor está em casa, seja ele russo, árabe ou português.

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Cristovão Tezza é escritor.