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Fernando Martins

Cidadania manchada de rosa

Existe um princípio jurídico universalmente aceito nas democracias de que ninguém é culpado até que haja prova em contrário. É uma garantia contra a injustiça e a tirania. Se é preciso ter elementos que comprovem a culpa de alguém, fica mais difícil que autoridades constranjam ou mesmo eliminem seus adversários com base em acusações falsas ou suspeitas infundadas.

Mas o Estado brasileiro, numa espécie de conluio com o poder econômico, decidiu subverter o princípio da presunção da inocência. A nova regra do Banco Central (BC) sobre as notas manchadas de rosa pelo sistema antifurto dos caixas eletrônicos é um pequeno exemplo de como tornar todos os cidadãos suspeitos até ordem em contrário. É também um indicativo de que o DNA autoritário da burocracia nacional ainda subsiste. E uma mostra de que o governo desconfia de seus cidadãos e não assume suas responsabilidades.

Os bancos decidiram evitar os cada vez mais frequentes roubos a caixas eletrônicos. Inventaram um sistema que mancha as cédulas quando a máquina é explodida ou violada. Até aí, tudo bem. O problema é que a tecnologia não está imune a falhas e o dinheiro sacado legalmente pode ser atingido pela tinta antifurto.

O BC ignorou esse fato e emitiu uma norma que invalida as notas manchadas e que torna suspeito de roubo qualquer um que tiver o infortúnio de sacar cédulas rosas – já que ele será investigado e terá de perder tempo para provar sua inocência e recuperar o valor perdido. E o pior: os criminosos, como sempre, já encontraram meios de burlar o sistema antifurto e descobriram uma solução química que lava as manchas – algo que obviamente não estará disponível às pessoas de bem.

Resumo da ópera: para solucionar um problema de criminalidade, o governo e os bancos se unem para jogar a responsabilidade e o prejuízo sobre o lado mais fraco: a população. O cidadão não tem culpa alguma se o sistema inventado pelas instituições bancárias pode falhar. E tampouco se o Estado não consegue cumprir sua função básica de garantir a segurança pública.

A tinta rosa dos caixas eletrônicos não tinge apenas as cédulas de real. É uma mancha na cidadania; um risco de mácula sobre pessoas de bem. Mostra ainda um defeito congênito do Estado brasileiro: a aliança de agentes governamentais com alguns setores privados – os "amigos do rei" – em detrimento do resto da sociedade. Nesse tipo de comportamento reside a origem de muitos dos males do país. Limpar essa marca que suja a democracia brasileira não será tarefa fácil.

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