Existe uma expressão que, de tão corriqueira na boca dos brasileiros, parece ser inocente. Mas na verdade esconde o desconforto generalizado do país com o princípio da igualdade que fundamenta a república. Quando alguém fala "cidadão comum", endossa, ainda que inconscientemente, a ideia de que há pessoas "especiais", "superiores". É essa forma de pensar que dificulta a criação de uma verdadeira democracia no país, que o amarra a seu passado escravocrata. Ainda mais porque ela está amplamente disseminada no poder público, que tem a missão de diminuir as desigualdades.
No mês passado, quando foi defender na Câmara Federal a manutenção de seu mandato, o deputado-presidiário Natan Donadon recorreu ao argumento de que, por ser político, não pode ser tratado como os demais brasileiros ainda que tenha sido condenado por desvio de dinheiro público e esteja preso. "Eu acabo de chegar do presídio da Papuda", disse aos colegas parlamentares. "Hoje, dia 28 [de agosto], completam-se dois meses que lá estou preso, sendo tratado como um preso qualquer, um preso comum." O discurso sensibilizou grande parte dos deputados que também não se sentem "comuns". Donadon não foi cassado.
A distinção entre presos "comuns" e "diferenciados" está inscrita inclusive em lei, que assegura cela especial àqueles que têm diploma universitário (no caso das prisões provisórias ou preventivas). Também se revelou no início do mês, quando foi noticiado que o governo do Distrito Federal estava reformando uma ala do Centro de Progressão Penitenciária para supostamente receber os mensaleiros condenados pelo STF. Nas novas celas, individuais, haveria televisão e banheiro privativo. São regalias, considerando as condições das prisões brasileiras.
O sentimento de que há gente que deve ter direitos "especiais" também não escolhe cor ideológica no Brasil. Mesmo os mais notórios representantes da esquerda que prega a igualdade no mundo inteiro justificam os privilégios. Há quatro anos, em junho de 2009, o então presidente Lula defendia o tratamento diferenciado a José Sarney, cuja gestão no Senado à época era alvo de uma série de denúncias de irregularidades na imprensa. "O Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum", disse Lula.
Nas democracias, a própria ideia de que há "cidadãos comuns" deveria ser incomum. Todos são apenas cidadãos, iguais em direitos. Mas a naturalidade com que a expressão convive entre os brasileiros revela o abismo que separa o país da modernidade.
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