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Minha vizinha de coluna aqui na Gazeta aos fins de semana – Marleth Silva – terminou, outro dia, sua bela crônica Ninguém mais chora o amor perdido citando Fernando Pessoa: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?” Ela observava que, embora os desencontros das paixões ainda causem dor, admitir esse sentimento ficou fora de moda. Isso se reflete nas músicas mais tocadas no país. Nelas, parece só haver gente feliz e poderosa por aí.

Se me permite, cara Marleth, vou pegar o fio da meada e colocar minha colher nessa panela. Os tais “semideuses” do poeta não estão apenas nas letras de músicas. Mas em quase todos os lugares: redes sociais, escolas, universidades, trabalho, política...

Ler os “Ensaios” de Montaigne é como conversar com um amigo boa praça tomando uma cerveja no bar

Em tempos de campanha eleitoral, nem é preciso ir muito longe para achá-los: os reis do “eu sei como fazer” aparecem logo ali na esquina pedindo seu voto. Também estão dentre aqueles que, soberbos e seguros de si, não arredam o pé de suas opiniões e dividem o mundo entre coxinhas e mortadelas (esse cardápio, aliás, já está dando indigestão – ei, será que ninguém tem um pão de queijo pra servir?!). E, enfim, os “semideuses” também estão dentro de cada um de nós – ao menos vez e outra.

E daqui salto do poeta para o filósofo. O francês Michel de Montaigne (1533-1592) era um cético: alguém que desconfia de tudo. Dele mesmo, inclusive. E do estilo de vida dos “semideuses”, que nos lança em busca de fama, aparência, riqueza e poder só para exibi-los aos outros como um troféu.

Mas, a léguas de ser um desconfiado rabugento, Montaigne era um cético bem humorado. Muito bem humorado. Capaz de pérolas – tirem as crianças da sala! – como esta: “Mesmo no mais alto trono do mundo estamos sempre sentados sobre o nosso traseiro”, uma crítica ao pedantismo de quem se acha melhor que os outros.

Ele também tinha uma boa resposta para os incômodos causados pela obsessão pelo corpo perfeito. Por aparecer para a “sociedade”. Por arrumar um diploma ou título que lhe dê status. A resposta? Desencana. Todo mundo, no fundo, é igual: “Reis e filósofos precisam diariamente esvaziar os intestinos. E também as mais belas damas”, dizia o francês levemente desbocado. Ops! Esqueci de avisar para tampar os ouvidos das crianças!

Mas Montaigne também era um pensador humano e sutil ao tratar de temas que nos são caros. Vamos a alguns exemplos. Sobre a busca de riquezas por si só: “É pelo gozo [dos objetos] e não pela posse que somos felizes”. Sobre como evitar a dor de perder algo (não uma pessoa querida): “Não devemos nos agarrar a coisas que podem ser tiradas de nós com dor”.

Montaigne também foi hábil em pinçar aforismos de outros autores para embasar seus argumentos. É um prazer encontrar em seus ensaios citações de clássicos como Cícero: “O amor é o desejo de alcançar a amizade de uma pessoa que nos atrai pela beleza”. E também de Sêneca: “Os prazeres leves são loquazes; as grandes paixões, silenciosas” (aqui, “paixão” assume seu significado original: dor; e o pensador francês usa a citação para explicar por que emudecemos diante de um sofrimento grande).

Ler os Ensaios de Montaigne, a obra pela qual ficou conhecido, é como conversar com um amigo boa praça tomando uma cerveja no bar. Você pode até discordar do que ele diz – e o filósofo não faz muita questão de que você concorde: “A palavra é metade de quem a pronuncia e metade de quem a escuta”. Mas, ainda assim, “ouvi-lo” é um alento. Principalmente se o que se busca é viver mais tranquilamente.

A minha metade está feita. Agora é com você.

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