Não me lembro bem. A memória prega peças com o tempo. Mas acho que foi numa viagem noturna de carro que vi uma pela primeira vez. Ainda criança. O céu estrelado. De repente, o alumbramento. Ela surge do nada. Brilha rápido. Risca um rastro fugaz. E desaparece. Até parece a felicidade. Mas falo das estrelas cadentes. Elas sempre deixam gosto de quero mais. Logo virei um caçador delas. Olhos fixos no firmamento pelas estradas da vida. Em vão. Aprendi isso cedo. Não adianta desejá-las. Caprichosas, só aparecem quando querem. É isso que as torna tão fascinantes. Quem as vislumbra é um afortunado. Talvez por isso façamos pedidos às estrelas cadentes. Afinal, sempre é bom aproveitar as ondas de boa sorte.
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Já faz uns bons 20 anos. Por aí. Eu, ainda um universitário. Na PUCPR. Era esta mesma época do ano: a virada do inverno para a primavera. Uma manhã de sol temperada por uma brisa leve e quente. Não sei por que, mas quase todo mundo havia voltado para casa. Matou aula. Preferi ficar com uns poucos amigos.
Há algo de curioso na ideia de serendipity. Parece haver uma condição para que ele desabroche
O vento, então, soprou forte. Bafejou os galhos das paineiras fora da sala e jogou painas para dentro. Para quem não liga o nome à “pessoa”, painas são aqueles flocos de algodão que envolvem as sementes da árvore. Dito isso, voltemos à história. As plumas começaram a dançar de um lado para o outro. Depois, num redemoinho, como se fora uma ciranda infantil no alto da sala. Enfim, caíram. Suaves. Cena de sonho. Cena de filme. E eu estava dentro dela. Amarcord, de Federico Fellini, começa e termina assim: com flocos de algodão voando livres no início da primavera. Foi um presente para os olhos. Duas décadas depois, me recordo – “m’arcord”, no dialeto italiano de Rimini, a cidade de Fellini. Nunca houve um começo de primavera como aquele. Ao menos para mim.
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Não tinha com quem ir. Mas queria ver um filme no cinema – não, não era Amarcord. Fui. Sozinho. Encontrei uma inusitada companhia. De uma mariposa. Sem tantas cores a exibir, elas são vistas como as primas feias das borboletas. Tenho pra mim que só lhes falta a luz certa. Pelo menos foi isso que ocorreu com aquela pequena intrometida, uma intrusa na sala escura. Subitamente, ela apareceu e cruzou a projeção. Antes de encontrar a tela, o filme a banhou de luminosidade dourada. Por instantes, esqueci tudo o mais. E meus olhos seguiram o voo incerto da mariposa de ouro. Parecia uma estrela amarela flutuando no meio da escuridão. Até que ela se foi. Foi melhor que o filme.
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Hora de juntar os pedaços. Costurar as histórias. Há, afinal, uma linha que as une. E é algo além daquilo que está no ar – um ponto comum aos três “causos”. Está no peito também. Um sentimento: a felicidade, o prazer que se encontra ao acaso, sem que estejamos procurando. Como ver estrelas cadentes. Apreciar as painas de setembro. Surpreender-se com a mariposa no cinema.
Há no inglês uma bela palavra que sintetiza essa agradável sensação que, de outro modo, precisamos de uma longa expressão para explicá-la: serendipity (OK, o português já a incorporou a alguns dicionários ora como serendipitia, serendipismo ou serendipidade. Mas prefiro-a no inglês; soa melhor).
Embora seja um feliz acaso, há algo de curioso na ideia de serendipity. Parece haver uma condição para que ele desabroche. Para caçar estrelas cadentes, tive de olhar ao alto. Ver longe. Não as vi de cabeça baixa. Ou quando só olhava o umbigo. As painas só dançaram diante de meus olhos porque escolhi aprender algo novo na aula a voltar ao conforto de casa – onde provavelmente nada faria. E só encontrei beleza na feia mariposa porque não me importei com a pequena solidão de ir sozinho ao cinema.
Às vezes coisas fantásticas acontecem. Mesmo nos momentos difíceis. Mas a gente tem de deixar acontecer. E estar preparado para enxergá-las. Isso é serendipity.