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O fetiche da palavra

Foi golpe na presidenta. Não foi golpe – e o certo não é presidenta, mas presidente. É invasão de escolas. Não, se trata de ocupação. Ele é progressista. Humm, só quer usar um termo mais “bonitinho” para esconder que é comunista. Aquele é de direita. Você deveria dizer: reacionário. Veja o menino. Não diga isso; não há gêneros definidos: o correto é menine (ou meninx).

Os exemplos são muitos e não param por aí. O país vive uma estranha disputa em torno de palavras. E muitas vezes essas discussões se deslocam tanto do mundo concreto que tiram o foco do que interessa ou turvam o olhar sobre a realidade.

A palavra é o mais poderoso símbolo já criado pela humanidade. Representa pensamentos, emoções, objetos, fatos, conceitos. É uma ferramenta excepcional; permite a comunicação. Ainda assim, ela não deixa de ser apenas um símbolo. Que pode ter ou não correspondência com a realidade.

Mas como tudo o que envolve poder – e a palavra é um símbolo poderoso –, muitas vezes ela é alvo de um conflito. Uma guerra em que cada lado busca impor a definição que entende ser a correta e as consequências que isso implica. Se foi golpe, então a vítima é inocente. Se não foi, está caracterizado a legitimidade do ato de destituição e a suposta vítima não é vítima, mas autora de um crime. Se houve invasão, há uma ilegalidade. Se é ocupação, trata-se de manifestação legítima. E assim por diante...

Não há como fugir do uso de definições; são necessárias. Mas o problema é que elas não conseguem abarcar a complexidade dos seres humanos e de suas relações. O que é a justiça? O amor? O bem? O mal? A humanidade, em milênios de história, não conseguiu até hoje dar a resposta definitiva a essas questões. Definições sempre foram e sempre serão simplificações da realidade.

Saber disso é importante para não cair na armadilha de um perigoso fetiche da palavra: acreditar que as definições captam a essência, a verdade última das coisas. É uma crença que seduziu gente notável e que tem sido uma poderosa força motriz da história do pensamento. Seu precursor é tão somente o filósofo grego Aristóteles. E a busca das essências atravessou os milênios chegando à modernidade como o projeto maior da ciência.

Considerado por muitos como um dos maiores teóricos do conhecimento do século 20, o austro-britânico Karl Popper (1902-1994) não negava haver essências. Mas rejeitava o uso do “essencialismo” por argumentar que ele conduz às explicações definitivas – o que, por sua vez, cria obstáculos ao avanço da ciência. Se já se sabe tudo o que se tem a saber, pra que seguir investigando a realidade? Popper destacava ainda que a busca das essências leva ao pensamento dogmático e autoritário pela parte de quem se intitula detentor do conhecimento.

O risco que o Brasil corre ao deslocar a discussão de problemas reais para o mundo das palavras e definições é justamente esse descrito por Popper: o dogmatismo, o autoritarismo e a paralisia do conhecimento e do processo de descoberta de soluções para os desafios do país. Um lado pensa que tem as respostas definitivas e corretas e nem mesmo se abre ao diálogo com o outro.

Por exemplo: a discussão em torno do “golpe” ou “não golpe” tende a ocultar o fato de que Dilma Rousseff realmente descumpriu a lei, mas que isso pouco importava para a maioria dos congressistas, que precisavam apenas de um pretexto para o impeachment.

O debate das “ocupações” ou “invasões” de escolas tende a reduzir a visão sobre os estudantes a dois estereótipos: heróis de uma causa ou baderneiros. O esforço para definir o fenômeno tirou o foco da compreensão dele. Foram mais de mil escolas ocupadas. Não é pouca coisa. E é impossível que tanta gente assim possa ser enquadrada em dois rótulos.

A disputa política entre esquerda e direita também tem se caracterizado por uma briga de palavras simplificadoras e pejorativas: coxinhas, golpistas, petralhas, comunistas... Na verdade, há muito mais complexidade nas várias “direitas” e muitas “esquerdas” que existem no país. Do mesmo modo, a luta de alguns para grafar palavras sem gênero definido (menine ou meninx) não vai mudar em nada a orientação sexual de garotos e garotas na vida real.

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