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Fernando Martins

O trote e o direito das primícias medieval

Imagine a seguinte situação: você está em sua festa de casamento, dançando com a noiva, quando entra no salão o prefeito ou o governador e exige passar a noite de núpcias com sua mulher. Aí, você descobre o pior: a lei dá a ele o direito de desposá-la.

Sem dúvida alguma, isso seria um absurdo. Mas nem sempre foi assim. O "direito da primeira noite" existiu durante séculos, sobretudo na Idade Média. Naquela época, o senhor feudal era a autoridade máxima dentro de seu território e podia requisitar qualquer noiva para dormir com ele antes do marido.

Tão antigo, e por vezes bárbaro, quanto o "direito das primícias" é o trote estudantil. A diferença é que este atravessou os tempos sendo aceito por amplas parcelas da sociedade. Quando os universitários do século 21 saem às ruas para humilhar, maltratar e extorquir dinheiro dos calouros, sob a singela justificativa de tratar-se de uma brincadeira, nada mais fazem do que retomar uma tradição medieval que começou quando surgiram as primeiras universidades europeias, por volta do século 12.

No início, a separação nas universidades entre calouros e veteranos tinha uma razão sanitária. Em uma época assolada por pestes, os novatos ficavam em uma espécie de quarentena contra a possível disseminação de doenças. Tinham os cabelos raspados para evitar piolhos – tradição que se manteve até hoje. Também não podiam frequentar as salas onde estudavam os alunos antigos. Assistiam às aulas em seus vestíbulos – daí o termo "vestibulando" para designar aqueles que queriam entrar na universidade.

Os motivos profiláticos originais do trote, porém, logo perderam espaço para a violência e a humilhação. Há relatos de novatos sendo obrigados a beber urina e a comer excrementos no século 14, nas universidades de Bolonha, Paris e Heidelberg. As universidades portuguesas, sobretudo a de Coimbra, acabaram por seguir a moda europeia. E o Brasil herdou de Portugal a bizarra tradição.

A "justificativa" do trote, tanto na Idade Média como atualmente, é a "necessidade" de domesticar os calouros, os "bichos". Por sinal, a palavra "trote" quer expressar exatamente isso. O trote, diferentemente do passo lento e do galope, é uma forma de andar não-natural do cavalo: precisa ser ensinado pelo homem, muitas vezes a chicotadas.

Há, porém, uma explicação mais profunda para o trote: ele é um ritual para mostrar que a sociedade é profundamente hierarquizada e cada um deve saber o seu lugar; que há um "senhor" a quem se deva respeitar, não importa se ele esteja certo ou errado.

Nesse aspecto, a violência universitária atual em nada difere do antigo direito das primícias. Passar a noite de núpcias com as noivas do feudo era uma forma de dizer quem mandava. Submeter um calouro a humilhações, na Idade Média ou hoje, é mandar o mesmo recado.

Em uma época em que ser de vanguarda é lutar por mais igualdade e pelo direito de que todos um dia possam ter as mesmas oportunidades, é curioso notar que nossa juventude esteja justamente do lado oposto. Não é difícil compreender por que nossos políticos sentem-se tão acima do restante da sociedade. Eles aprenderam na universidade.

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