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Fernando Martins

A vitória da traição

No mundo pragmático em que vivemos parece que a traição deixou de ser uma vergonha. As eleições para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado são exemplos de como trair virou uma arma

Desde os tempos mais remotos o ser humano trai o seu semelhante. Pode-se dizer que essa fraqueza é um traço inato da humanidade. Mas, como a vida em sociedade é impossível sem que haja um mínimo de confiança entre as pessoas, todas as culturas condenam a traição. E isso costuma ser expresso nos mitos e histórias de cada povo.

Adão e Eva, no início dos tempos, traíram a confiança de Deus ao provar do fruto proibido. Foram expulsos do paraíso. O primogênito deles, Caim, também não se livrou da tentação. Por ciúme da preferência de Deus por Abel, convidou seu irmão para um passeio no campo que acabou se revelando uma emboscada para matá-lo. A traição seguida do assassinato envergonhou Caim e ele teve de desaparecer no mundo.

Só para continuar na cultura judaico-cristã, vale lembrar que o beijo de Judas na face de Jesus tornou-se o símbolo máximo da traição dissimulada. O apóstolo matou-se sufocado pelo peso da consciência de ter trocado Cristo por dinheiro. Dois mil anos depois, o termo "judas" é sinônimo de "traidor".

Já os antigos gregos criaram o mito de Medeia, a esposa traída pelo marido, Jasão, que se vinga dele matando os próprios filhos. A infidelidade de Jasão aos votos do casamento, portanto, é punida com a perda de sua própria descendência.

Até mesmo os brasileiros têm o seu grande traidor: Joaquim Silvério dos Reis, o delator de Tiradentes. Embora tenha tido suas dívidas com a Coroa Portuguesa perdoadas como prêmio por ter revelado às autoridades quem eram os inconfidentes, acabou sendo punido pela História. Hoje é retratado como um vilão.

No mundo pragmático em que vivemos, porém, parece que a traição deixou de ser uma vergonha, subvertendo a tradição histórica que permitiu à humanidade construir a civilização. As eleições para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado são exemplos de como trair virou uma arma sem freios na busca de objetivos. Não que trair na política seja uma novidade. Isso sempre existiu. Mas o que chama a atenção é a desfaçatez com que os parlamentares falavam abertamente na traição de colegas como estratégia para eleger o candidato de seu grupo.

A opinião pública parece não ter se incomodado com o jogo de traições na cúpula do poder nacional. Mau sinal. Quando trair vira um valor, é sinal de que há algo de errado no tecido social.

Provavelmente é uma característica de nós, brasileiros, sermos mais tolerantes à quebra de confiança. Costumamos ver com certo ar de superioridade a obsessão dos norte-americanos pela vida privada de seus políticos, com seus casos extraconjugais. Mas talvez eles estejam certos e esse comportamento seja um dos alicerces do maior respeito dos Estados Unidos à coisa pública. Quando um político não consegue manter o compromisso pessoal com sua esposa, quem garante que não irá trair seu eleitor? É uma questão de princípios.

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