Imagine a seguinte situação: você está em sua festa de casamento, dançando com a noiva, quando entra no salão o prefeito ou o governador e exige passar a noite de núpcias com sua mulher. Aí, você descobre o pior: a lei dá a ele o direito de desposá-la.
Sem dúvida alguma, isso seria um absurdo. Mas nem sempre foi assim. O "direito da primeira noite" existiu durante séculos, sobretudo na Idade Média. Naquela época, o senhor feudal era a autoridade máxima dentro de seu território e podia requisitar qualquer noiva para dormir com ele antes do marido.
Tão antigo, e por vezes bárbaro, quanto o "direito das primícias" é o trote estudantil. A diferença é que este atravessou os tempos sendo aceito por amplas parcelas da sociedade. Quando os universitários do século 21 saem às ruas para humilhar, maltratar e extorquir dinheiro dos calouros, sob a singela justificativa de tratar-se de uma brincadeira, nada mais fazem do que retomar uma tradição medieval que começou quando surgiram as primeiras universidades europeias, por volta do século 12.
No início, a separação nas universidades entre calouros e veteranos tinha uma razão sanitária. Em uma época assolada por pestes, os novatos ficavam em uma espécie de quarentena contra a possível disseminação de doenças. Tinham os cabelos raspados para evitar piolhos tradição que se manteve até hoje. Também não podiam frequentar as salas onde estudavam os alunos antigos. Assistiam às aulas em seus vestíbulos daí o termo "vestibulando" para designar aqueles que queriam entrar na universidade.
Os motivos profiláticos originais do trote, porém, logo perderam espaço para a violência e a humilhação. Há relatos de novatos sendo obrigados a beber urina e a comer excrementos no século 14, nas universidades de Bolonha, Paris e Heidelberg. As universidades portuguesas, sobretudo a de Coimbra, acabaram por seguir a moda europeia. E o Brasil herdou de Portugal a bizarra tradição.
A "justificativa" do trote, tanto na Idade Média como atualmente, é a "necessidade" de domesticar os calouros, os "bichos". Por sinal, a palavra "trote" quer expressar exatamente isso. O trote, diferentemente do passo lento e do galope, é uma forma de andar não-natural do cavalo: precisa ser ensinado pelo homem, muitas vezes a chicotadas.
Há, porém, uma explicação mais profunda para o trote: ele é um ritual para mostrar que a sociedade é profundamente hierarquizada e cada um deve saber o seu lugar; que há um "senhor" a quem se deva respeitar, não importa se ele esteja certo ou errado.
Nesse aspecto, a violência universitária atual em nada difere do antigo direito das primícias. Passar a noite de núpcias com as noivas do feudo era uma forma de dizer quem mandava. Submeter um calouro a humilhações, na Idade Média ou hoje, é mandar o mesmo recado.
Em uma época em que ser de vanguarda é lutar por mais igualdade e pelo direito de que todos um dia possam ter as mesmas oportunidades, é curioso notar que nossa juventude esteja justamente do lado oposto. Não é difícil compreender por que nossos políticos sentem-se tão acima do restante da sociedade. Eles aprenderam na universidade.
fernandor@gazetadopovo.com.br