Dona Araci Minaif tem 70 anos, uma casa de madeira no Alto da XV, 50 galinhas, 6 gatos e 25 toneladas de lixo distribuídos do piso ao teto. Melhor, tinha. Há uma semana, em cumprimento de uma ordem judicial, seis caminhões foram carregados com tudo o que se viu pela frente, com exceção das paredes.
Na hora, juntou tanta gente que parecia crime. Na bagunça, dois felinos se escafederam. Um galo e sua companheira escaparam dos operários da Limpeza Pública e hoje ciscam as sobras do terreiro. Quanto à velha senhora, passou uma noite na Fundação de Ação Social da Conselheiro Laurindo onde, diz, tomou uma sopa de pedra em companhia de bêbados e mendigos. Fugiu na madrugada de sexta e voltou, descalça, para o lugar que chama de seu. "Eu nasci aqui."
Araci é uma solitária urbana. Não se casou. Não tem filhos. Nunca morou noutro lugar que não a esquina das ruas Fernandes de Barros com Dias da Rocha, um dos pontos elegantes da Curitiba do Norte. Mas os Minaif eram modestos. Alfredo trabalhava de carpinteiro e Julieta em casa de família. Tiveram Acyr e Araci, ele carpinteiro, ela doméstica. Para a guria, deram um conselho. "Estude que dê para ler e escrever." Depois do primeiro ano primário, a loirinha de olhos azuis deu baixa na Escola Cristo Rei. "Eu era linda. Ficava bem de azul e de rosa", conta, debruçada sobre o muro de cimento, o cabelo desgrenhado, a blusa dada, os pés sujinhos de terra.
Durante as três décadas em que serviu dona Irene, numa rua em riba, se sentia feliz. Num dia, a patroa mudou. Em outro, a mãe foi ter contas com Nosso Senhor. O mano seguiu atrás. Sem serviço e sem dinheiro, a mulher deu de guardar todas as tralhas que lhe arrumavam de cadeiras sem pé a televisores que nem a pau, de sacos com cascas de frutas a latinhas dos bares dali.
Quando o pessoal da prefeitura bateu na porta para tirar Araci da caverna, na maior parte dos quartos mal se podia entrar. O chão estava coberto por roupas. Havia ratazanas tantas que por pouco não fizeram o sanitarista Oswaldo Cruz pular da tumba. E se descobriu que os ovos das galinhas não eram de ouro formavam pilhas de cascas que levavam um cheiro dos infernos para pertinho do céu.
Tudo indica que alguns espertinhos das cercanias decidiram tirar proveito do terrenão da Araci, onde até goiaba dá. Todo dia 5, uma conhecida de 84 anos vem pesar metal, com a filha atrás berrando "pra que isso, mãe?" Em poucos meses o lugar virou uma sucursal da Caximba. "Acabou que implicaram comigo." Até agora, quatro operações promoveram arrastões de limpeza no endereço mais famoso da redondeza (depois do Beto Batata). A última foi de comover gênio ruim.
O lamento da mulher por seus pertences é uma ladainha triste. "Levaram a canequinha da minha mãe. Minha tesoura bem eu que ainda costuro à mão. Meus documentos. Carregaram a panela de pressão com meu almoço dentro. E a ração dos gatos..."
A ração foi presente da atriz Regina Vogue, uma das gentes que adotaram Araci. Em tempos idos, a espevitada Regina lhe deu até um apito, para que em caso de emergência fizesse estardalhaço. Outra vizinha, Lílian Seleme, a ajuda sem reservas. E uma delas, rua de baixo, empresta o chuveiro à velha. Ali, sabe-se, é tudo na base de balde. Com a limpa, foi-se o vaso quebrado. "Vou ter de usar penico."
Para não dizer que está de todo infeliz com a faxina, Araci festeja o radinho salvo da tormenta. Nele escuta os padres cantores e Luiz Carlos Martins. Num dos programas ainda toca o hit "João de Deus", que lhe dá ganas de chorar. "Só fazem esse tipo de coisa com quem já morreu."
Em tempo. O galo não canta mais naquela esquina do Alto da XV. Pobre Alto da XV.
José Carlos Fernandes é jornalista
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