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José Carlos Fernandes

Biro, Zadig, Tistu e o destino

 | Foto: Aniele Nascimento/ Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Aniele Nascimento/ Arte: Felipe Lima)

Conversei com o marceneiro Devanir Lopes, o Bi­­ro, ao pé-de-poço de sua casa de fundos na Vila São Jorge – um arrabalde do velho Portão. Nem bem sentou perto da tampa de madeira que balança – um lugar que me­­teria medo em super-herói –, desatou contar a melhor de suas histórias: a de como um livro de Voltaire lhe botou trilhos no destino.

Biro começa pelo começo. Foi alfabetizado na Escola Municipal Dona Maria Chalcoski, na Vila Irene, um daqueles endereços de Pinhais em que o muro faz divisa com a linha do trem e seja o que Deus quiser. Da cartilha, confessa, achava mais graça era nas figurinhas. Na hora do "dá-dé-di-do-du", que tédio, se pegava imaginando diabruras para aqueles carimbinhos de fauna e de flora que trazem alegria aos livros escolares.

Ficou tão bamba que quando chegou à quinta série, no Colégio Estadual Pedro Macedo, em Curi­­tiba, trazia na bagagem vagões de invencionices. Devanir podia não ser o artilheiro da quadra ou o Don Juan do túnel da Rápida, mas já era o tal que escrevia redações nota 10 para amigos e para as gurias – entre elas Joelma, hoje sua mulher.

Naqueles dias em que Biro tirava "excelente, com louvor", ou­­tro sucedido se deu. A mãe do menino ganhou numa casa de família um lote de livros que juntavam poeira pela sala. No meio do espólio estava o pequenino Zadig – La Destinée, de Voltaire. Pa­­ra quem necessita de um K-Suco na memória, Voltaire, o sátiro mais temido do século 18, foi um defensor tão aguerrido da liberdade de expressão que mal se po­­de imaginá-lo, em setembro de 2009, à mercê de juízes, governan­­tes e bolivarianos que esmagam com os pés os ideais da Re­­volução Francesa. Pois é, Voltaire tira uma soneca eterna no Pan­­teão de Paris, mas nada impediu que seus escritos chegassem aos rincões da Vila São Jorge. Assim se deu.

Devanir tinha 11 anos e uns fiapos de barba ruiva quando debulhou Zadig – La Destinée. O texto trata de um sujeito que faz a coisa certa, mas que não para de levar sacolejos da vida, dando a entender que virtude, justiça e sorte não andam de braço dado. Estaria o infortúnio gravado na palma da mão?

Como nem o filósofo sabia ao certo, o leitor pagou para ver. Até que outro fato se deu. Em 30 de agosto de 1988, dia em que os professores do Paraná levaram uma sova na frente do Palácio Iguaçu, meninos, Biro viu seu mestre de Química todo ensanguentado, debaixo de porrada. "Uma tragédia", diz, ao lembrar do episódio que o levou a abandonar a escola e a ir bater cartão na marcenaria. Era lá o seu lugar.

A decisão deixou aos prantos a professora de Português Gui­­lhermina Cavalli, aquela que lhe passou um sabão ao saber do tráfico de redações no Pedro Mace­­do. Ela o sonhava um escritor. Até onde se sabe, não desistiu. Ainda hoje, é quem revisa os contos e versos que ele produz, tal como antes. Biro é um Zadig – está escrito.

A propósito. O irônico Voltai­­re não saiu mais da cabeceira do moço, mas ganhou a companhia de outro francês, o cândido Mau­­ri­­ce Druon, autor de Tistu – O me­­nino do dedo verde. Ninguém é de ferro. Acho mesmo que Biro, Tis­­tu e Zadig formam uma comunidade imaginária na Vila São Jor­­ge. Ultimamente, aliás, andam muito ocupados, escrevendo con­­tos para a filha Thailla, de 8 anos.

Nessas histórias, hipopótamos sentam no nariz de uma foca e elefantes brincam num escorregador. Na pena do carpinteiro, o destino é ele quem traça. Ao ler suas páginas, é como se eu o visse piá, se distraindo com as figurinhas da cartilha enquanto o trem cruza a paisagem, obediente à trilha que lhe cabe.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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