“Qual vai ser o título da coluna: ‘Clarissa é de morte, o retorno’?”, brinca a pesquisadora Clarissa Grassi, 40 anos, ao chegar ao local que se tornou sua segunda casa – o Cemitério Municipal São Francisco de Paula, “o Municipal”, como resumem os curitibanos. O “campo santo”, na expressão antiga, se tornou objeto de estudo de Grassi há 14 anos e faz cinco que ela oferece concorridas visitas guiadas pelos 5.743 túmulos do local, morada de 80 mil sepultados, vizinhos em 139 quadras – um bairro tão grande que mete medo no Sítio Cercado, Boqueirão, Cajuru e Uberaba.
As tais visitas causam frisson e fila. As inscrições se esgotam em duas horas e atingiram, até o momento, pelo menos 3 mil pessoas, que se acotovelam por uma vaga, como se disputassem o último vagão para o Horizonte Perdido. O interesse é tamanho que a nova gestão municipal decidiu ouvir a voz do povo: contratou Clarissa e transformou as visitas mensais em encontros temáticos. Em março foram as mulheres; em abril serão os monumentos; em maio, os negros. Por aí vai. A iniciativa oficializa o que acontecia na prática – o mais antigo cemitério deixou de ser um espaço lúgubre para voltar a ser um espaço público, onde toda sorte de curiosidade post mortem é represada. A empreitada deu tão certo que rivaliza com a Feira de Artesanato do Largo da Ordem, com o Festival de Teatro e, vá lá, com as selfies na frente do Hard Rock Café.
Sorte do cemitério. Quanto mais visto, menos será alvo de maus-tratos. Volta e meia acontece, resultando num tal de asa de anjo para um lado, placas de bronze sendo carregadas portão afora, prontinhas para serem fumadas. A cada barbárie, a imprensa aciona os órgãos responsáveis, mas ninguém tem uma palavra tão certeira sobre os tesouros do Municipal quanto Clarissa. Ela é um craque, candidata ao posto de menestrel da memória local, vago depois da morte do jornalista Cid Destefani. “Às vezes eu me sinto meio Romário Martins, reeditando o paranismo”, diverte-se.
Inteligente, falante e engraçada, Clarissa costuma deixar basbaques seus interlocutores, em particular os dados a chutar dados históricos. Além dos pendores para a genealogia, a guria tem latim para descrever em mesuras o estilo arquitetônico de um jazigo e, de quebra, contar historietas – algumas impagáveis – dos inquilinos que ali desfrutam da pestana eterna. Quando ela passa pelos túmulos, suspeito, os fantasmas se divertem. Não causa espanto que tanta gente queira ouvi-la, inclusive nas visitas noturnas que volta e meia oferece. Os amigos não perdoam – chamam-na de “a noiva cadáver” ou de “Carrie, a estranha”. Ri, mas nenhuma piada tem mais graça que a própria Clarissa dando oxigênio aos que partiram. É impressionante vê-la abrindo seus apontamentos para conferir informações de algum falecido, levantadas junto a familiares. “Ela tem a agenda dos mortos”, brincam os céticos. Melhor não desdenhar do desconhecido (risos).
Ainda que não chegue a um movimento planetário, o interesse pela arte e cultura cemiterial está longe de ser um fenômeno paroquiano
Ainda que não chegue a um movimento planetário, o interesse pela arte e cultura cemiterial está longe de ser um fenômeno paroquiano. A mesma curiosidade grassa em várias cidades do mundo. Ir a Paris e não visitar o túmulo de Oscar Wilde, Sartre e mesmo Allan Kardec – que, desconfia-se, não despacha mais lá – beira a heresia. Na América Latina, ainda não há concorrência para a Argentina, que fez do “La Recoleta” um endereço obrigatório, sob pena de Evita Péron nos chamar para um tango. Some-se à lista o México, onde o culto aos mortos, convenhamos, equivale a pular carnaval.
A própria Clarissa – cujo montante de referências sobre o culto aos mortos chega a nos fazer sentir toupeiras – confessa que se surpreende com o alalaô que o tema desperta. Nos encontros que promove no Municipal, inclusive, costumam ir crianças, acompanhadas dos seus, não raro puxando o cortejo, sem medo de alma penada. Querem aventura. Grassi não titubeia: essa redescoberta é uma resposta a um longo período de assepsia, expressa nos cemitérios que mais parecem um campo de golfe, ou monótonas Cohabs mortuárias, nas quais é preciso penar um purgatório para encontrar um endereço. “Acho que ir aos encontros é como recusar o esquecimento.”
Nos primeiros tempos, a réquiem militância de Clarissa Grassi parecia puro exotismo, própria de uma cidade pródiga em cultivar estranhezas, acumuladas nos últimos 324 anos. Mas isso é passado. Dois livros, uma dissertação de mestrado, representações em eventos nacionais e o reconhecimento de quem quer que tenha cinco minutos de prosa com ela bastam para atestar que a pesquisadora é dona de grande feito. Ela mostrou que o Cemitério Municipal funciona como o grande livro da história da cidade. Pode ser dividido em capítulos. OK – Poty Lazzaroto, Maria Polenta e Paulo Leminski repousam no Cemitério Água Verde, mas não há nuance da vida cultural, econômica e religiosa da capital que não possa ser acionado com um simples virar de quadra do São Francisco.
O recente recorte que a estudiosa fez no tema “mulheres” é prova disso. Clarissa não escolheu nenhuma delas com a intenção de soltar um manifesto, um libelo de gênero, ou tampouco se exercitar nas lides da história da vida privada. Fez tudo isso ao mesmo tempo. De uma lista de pelo menos 50 personalidades interessantíssimas ali sepultadas, elegeu 17 deusas. Esboçou o currículo mínimo de cada uma, depois temperou, o bastante para despertar na clientela a sensação de que uma tribo de amazonas etéreas vagou pelos pinheirais. Sim, algumas delas eram loiríssimas, de sobrenome esquisito; outras, doidas. Mesmo que cheirassem o comportado perfume de maçã da Helena Rubinstein, abalaram os pilares da catedral.
A “lista das mortas de Grassi” passa pela milagreira Maria da Conceição Bueno, falecida no fim do século 19. Por mulheres que invadiram os redutos masculinos, a exemplo da engenheira negra Enedina Marques (1913-1981), da médica Maria Falce de Macedo (1897-1972) e da empresária Maria Clara Abreu Leão (1868-1935). Presta tributo às professoras Júlia Wanderley (1874-1918), Maria Nicolas (1899-1988) e Helena Kolody (1912-2004), esta sobretudo poeta. A galeria de artistas é gorda – as pintoras Maria Amélia Assunção (1883-1955) e Violeta Franco (1931-2006); as cantoras Stelinha Egg (1914-1991) e Nhá Gabriela (1923-1996), a violinista Bianca Bianchi (1904-2002). Some-se Fanny Volk (1867-1948), a primeira fotógrafa, e tipos que resistem às primeiras e segundas impressões, como a feminista Marianna Coelho (1872-1954) e a diseuse, escritora, miss e milionária Didi Caillet (1903-1982), verdadeira pimenta na imaginação de quem conhece sua trajetória.
Com a companhia dessas senhoras avançadas em anos, todas juntas, o passeio promovido por Clarissa virou uma incursão à montanha russa Millenium Force, de Ohio. Esqueçam, senhores e senhores, a paz sepulcral dos cemitérios, a prece contrita, a flor deitada ao lado da lápide. Os mortos pedem vida.