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José Carlos Fernandes

A felicidade não se compra

 | Foto: Rodolfo Bührer / Ilustração: Benett
(Foto: Foto: Rodolfo Bührer / Ilustração: Benett)

Laércio Santini, 49 anos, ganha o pão vendendo ba­­dulaques de porta em porta. Dia desses, baixou na portaria da Gazeta do Povo, na Praça Carlos Gomes. Mas aqui não ofereceu nada a ninguém – nenhum dos objetos que produz, nenhum dos livros que escreveu. Queria apenas contar como o xadrez – o jogo – e a be­­­­bida – explico já-já – fizeram de­­le um homem feliz.

A felicidade virou uma febre mundial, o bambolê dos anos 2000. De tão badalada, saltou do suspeito território da auto-ajuda para os bancos universitários, nos quais é pesquisada como fenômeno cultural, debaixo de disputados seminários. E não faltam autoridades sobre o assunto, como o economista britânico Ri­­chard Layard, intelectual indignado com a fartura de estatísticas sobre consumo e a pindaíba de informações sobre o que as pessoas sentem.

Deu no que deu. Seu livro, Felicidade – Lições de uma nova ciência, é um estudo porreta, mas que pode ser lido com o mesmo prazer reservado ao último Paul Aus­­ter. Obviamente, há quem queira esmagar Layard debaixo de um pula-pula. Pesa sobre ele a acusação de incentivar ho­­mens e mu­­lheres a se comportarem como figurantes de propaganda de magazines. Como habitantes do Admirável Mundo Novo de Huxley.

Laércio entende nada de Layard e de Huxley. Sabe apenas que "encontrou a felicidade em ho­­rinhas de descuido". Acon­­teceu assim: baixinho e parrudo, dava duro numa academia de artes marciais. Estaria ainda hoje no tatame não fosse um aluno ter lhe apresentado uma iguaria renascentista – o xadrez. Foi como ver o mar.

Teve gosto ao saber das táticas do jogo: en passant, roque, xe­­que-mate – coisas de crânio. Mas o que lhe pegou de jeito foram as peças, altivas como obeliscos. Naquela mesma noite, catou um canivete e um cabo de vassoura e deu conta de esculpir o peão e o bispo, a torre e o cavalo; o rei e a dama. Uma proeza para quem, na escola, mal tinha colado re­­cortes de revista num almaço.

A paixão pelo artesanato foi tamanha que poderia alterar a órbita da Terra. Houve quem dissesse a Laércio que ele não levava jeito para o ofício, mas o cabra teimou. "Sou o peão, mas ainda vou ser o rei", brinca o sujeito que, em 20 anos, construiu decerto mais tabuleiros do que o enxadrista Garry Kasparov ganhou partidas. Há jogos tamanho Fada Sininho e outros na categoria Neverland. Encomendas despachadas para Paris e outras reservadas à pequena Capitão Leô­­nidas Marques, vizinha de Cas­­cavel, onde mora com Neide e dois filhos.

Cá entre nós, embora tenha alcançado fama como o "cara do xadrez", o artesão sentia que ain­­da lhe faltava um pedaço – pedaço encontrado enquanto as­­sava "uma carninha" no do­­mingo. Ali, diante da picanha, fez a contabilidade de uma existência. Não lembra bem, mas o fato é que saiu daquele churrasco com um propósito: ajudar os outros a rirem. Faria da vida um rodapé da Seleções do Reader’s Digest. Já na segunda-feira.

Deu certo. Laércio escreveu um livro chamado O bicho vai pegar, sátira na qual classificou 51 tipos de bebuns. Tem o dinossauro – o que vira bêbado depois de velho; o pato – que paga bebida para todos, tem o ... O mascate es­­tima ter vendido nas suas an­­dan­­ças 3,5 mil exemplares da pia­­da e prepara uma edição am­­pliada, com a descrição de nada menos do que 137 paus-d’água.

Se o xadrez fez de Laércio um cara persistente, as letras o fizeram divertido. É um sujeito assim que bate à sua porta. Ele carrega numa mala 78 quilos de tudo o que lhe importa: os jogos que esculpe, os livros que escreve. Ao chegar, diz frases que ti­­ram do sério: "Decidi ser feliz. Acho que há coisa de um ano. Quer saber como?" Quem por descuido ouvir, ganha de brinde uns minutos de felicidade.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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