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José Carlos Fernandes

Dois pães e um livro, por favor

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Coleciono histórias de gente que promove o livro e a leitura em espaços inesperados. Oba. São tantos e tantas que já se trata de um movimento planetário, digno de figurar num daqueles programas da Unesco, implantados na África Subsaariana, fotografados pelo Sebastião Salgado e visitados pelo príncipe de Gales – na falta da Diana e da Audrey Hepburn, é o que se pode arrumar.

Tem livro no lombo de jegue, livro em capelinha de Nossa Senhora, livro em peixaria de beira de praia, no açougue, em favela tomada pelo Comando Vermelho, em boteco de cachaceiro, em cortiços de dar dó. Até a ONG Ação da Cidadania, que promovia a campanha da fome do Betinho, já se rendeu aos encantos da literatura e hoje, em vez de pratadas de arroz com inhame, distribui Machados e Clarices.

Tenho cá para mim que cada iniciativa dessas esconde histórias tão boas quanto a dos livros que propagam. Contá-las é uma tentação. São simples e boas como bolinhos de chuva. Impossível esquecer o carroceiro de São Paulo que catou obras no lixo e formou uma biblioteca na ocupação onde mora, o Edifício Prestes Maia. Atente: os filhos do homem foram batizados com nomes de personagens imortais. Em vez de Sidclayton ou Waldevânia, Ulisses e Penélope. Sorry, burguesia.

Dia desses, visitei a Panificadora Pote de Mel, candidata a figurar nas páginas amarelas da literatura. Fica na Rua Conselheiro Araújo com a Dr. Faivre, uma esquina onde tudo pode acontecer – inclusive uma biblioteca funcionar em cima de um freezer pifado e embaixo dos cartazetes que informam o preço do x-peru e do bife a cavalo.

A Pote parece aquelas lanchonetes de Registro, em tempos idos. Só falta um ônibus azul da Cometa estacionado na frente. Passam por ali cerca de mil pessoas por semana – são parentes de pacientes do Hospital de Clínicas, universitários e professores da Fesp e da UFPR, moradoras da Casa da Estudante e fregueses da Linda Loterias, da Só Rosas e da Pastelaria Ponto Azul, todas vizinhas. Não estranhe tropeçar numa mala de viagem, na petizada se empanturrando de cheetos ou num pesquisador rabiscando uma tese acadêmica. A Pote é um hino à diversidade – gastronômica e intelectual.

Em meio a essa freguesia digna dos mercados de pulgas apareceu o jornalista Alessandro Martins, freguês do café sem pompa servido ali. Há um ano, com a morte do pai, herdou um lote de livros e decidiu tornar a propriedade privada um bem público. Em conversa com Sandra Lazzaris – herdeira como ele, só que da panificadora – teve a ideia de acomodar os títulos na geladeira velha e deixá-los seguir o rumo, de graça, sem cobranças. A única lei que rege a estante é: "Um livro fechado está adormecido. Se um livro acorda, uma pessoa acorda."

Tem sido um despertar só desde a última primavera. O freguês se achega enquanto espera o queijo-quente com pingado, escolhe a obra e, se der na telha, anota o que vai levar num capa-dura. Há quem faça trocas, quem doe do bom e do melhor, quem suma do mapa, quem crie teorias servidas com manteiga, como a que diz: "É bom que os livros venham do mesmo lugar onde é feito o pão." De que me lembro, nem Iser nem Jauss, nem Eco nem Picard disseram alto tão apetitoso.

Pelas contas de Sandra, tem uma centena de livros na Pote e nada menos do que 200 voando por aí. Muitos não voltarão para o capô do freezer. Sem dramas. A filosofia que rege ao estante é mesma da órbita do universo: tem de circular – inclusive nos dez passos que separam o balcão e a cozinha, onde há 15 anos trabalha a chapeira Roseli Dunayski. Ela hoje se vê leitora, como não acontecia desde os tempos em que estudava no Colégio Estadual Sebastião Saporski, usava meias três-quartos e devorava José de Alencar.

De avental branco e redinha na cabeça, avisa que adora mistério, que lê toda noite, que agora entende melhor as pessoas, etcetera e tal. Caso você vá à Pote, peça por obséquio – "prosear um cadinho com a Roseli". Sabe o que é, ela anda lendo uma coleção da Seleções Reader’s Digest e fala com tanto apetite do assunto que bailam seus olhos azuis. Dá uma fome que nossa.

Errata: Na coluna da semana passada, o nome do entrevistado Edgard Pilato saiu grafado Tortato. Nossas desculpas. Segundo Edgard, "é tudo parente na Caximba." Meno male.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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