Laércio Santini, 49 anos, ganha o pão vendendo badulaques de porta em porta. Dia desses, baixou na portaria da Gazeta do Povo, na Praça Carlos Gomes. Mas aqui não ofereceu nada a ninguém nenhum dos objetos que produz, nenhum dos livros que escreveu. Queria apenas contar como o xadrez o jogo e a bebida explico já-já fizeram dele um homem feliz.
A felicidade virou uma febre mundial, o bambolê dos anos 2000. De tão badalada, saltou do suspeito território da auto-ajuda para os bancos universitários, nos quais é pesquisada como fenômeno cultural, debaixo de disputados seminários. E não faltam autoridades sobre o assunto, como o economista britânico Richard Layard, intelectual indignado com a fartura de estatísticas sobre consumo e a pindaíba de informações sobre o que as pessoas sentem.
Deu no que deu. Seu livro, Felicidade Lições de uma nova ciência, é um estudo porreta, mas que pode ser lido com o mesmo prazer reservado ao último Paul Auster. Obviamente, há quem queira esmagar Layard debaixo de um pula-pula. Pesa sobre ele a acusação de incentivar homens e mulheres a se comportarem como figurantes de propaganda de magazines. Como habitantes do Admirável Mundo Novo de Huxley.
Laércio entende nada de Layard e de Huxley. Sabe apenas que "encontrou a felicidade em horinhas de descuido". Aconteceu assim: baixinho e parrudo, dava duro numa academia de artes marciais. Estaria ainda hoje no tatame não fosse um aluno ter lhe apresentado uma iguaria renascentista o xadrez. Foi como ver o mar.
Teve gosto ao saber das táticas do jogo: en passant, roque, xeque-mate coisas de crânio. Mas o que lhe pegou de jeito foram as peças, altivas como obeliscos. Naquela mesma noite, catou um canivete e um cabo de vassoura e deu conta de esculpir o peão e o bispo, a torre e o cavalo; o rei e a dama. Uma proeza para quem, na escola, mal tinha colado recortes de revista num almaço.
A paixão pelo artesanato foi tamanha que poderia alterar a órbita da Terra. Houve quem dissesse a Laércio que ele não levava jeito para o ofício, mas o cabra teimou. "Sou o peão, mas ainda vou ser o rei", brinca o sujeito que, em 20 anos, construiu decerto mais tabuleiros do que o enxadrista Garry Kasparov ganhou partidas. Há jogos tamanho Fada Sininho e outros na categoria Neverland. Encomendas despachadas para Paris e outras reservadas à pequena Capitão Leônidas Marques, vizinha de Cascavel, onde mora com Neide e dois filhos.
Cá entre nós, embora tenha alcançado fama como o "cara do xadrez", o artesão sentia que ainda lhe faltava um pedaço pedaço encontrado enquanto assava "uma carninha" no domingo. Ali, diante da picanha, fez a contabilidade de uma existência. Não lembra bem, mas o fato é que saiu daquele churrasco com um propósito: ajudar os outros a rirem. Faria da vida um rodapé da Seleções do Readers Digest. Já na segunda-feira.
Deu certo. Laércio escreveu um livro chamado O bicho vai pegar, sátira na qual classificou 51 tipos de bebuns. Tem o dinossauro o que vira bêbado depois de velho; o pato que paga bebida para todos, tem o ... O mascate estima ter vendido nas suas andanças 3,5 mil exemplares da piada e prepara uma edição ampliada, com a descrição de nada menos do que 137 paus-dágua.
Se o xadrez fez de Laércio um cara persistente, as letras o fizeram divertido. É um sujeito assim que bate à sua porta. Ele carrega numa mala 78 quilos de tudo o que lhe importa: os jogos que esculpe, os livros que escreve. Ao chegar, diz frases que tiram do sério: "Decidi ser feliz. Acho que há coisa de um ano. Quer saber como?" Quem por descuido ouvir, ganha de brinde uns minutos de felicidade.
José Carlos Fernandes é jornalista.
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