No início deste ano, um dos filhos do aposentado José de Camargo foi chamado à clínica de desintoxicação na qual seu pai estava de molho. Foi alvejado por uma questão matemática: “De zero a 100, que credibilidade devo dar ao que seu José diz?”, perguntou a psicóloga, pé atrás com as histórias de 1.001 noites contadas pelo paciente. A resposta foi estatística – “95% de credibilidade, doutora. Os outros 5% são viagem na maionese”. Mesmo com nota acima da média mundial, não obteve alta. Fugiu e passa bem.
Aos fatos. No mês que antecedeu à internação, José de Camargo estava batendo panelas em praça pública – a Eufrásio Correia, do lado da Câmara Municipal de Curitiba. Enfurecido com as declarações higienistas da Associação Brasileira de Bares e Casas Noturnas (Abrabar) – que pedia a remoção dos mendigos do Centro da cidade –, estacionou o carrinho de reciclagem, montou uma lona preta e se instalou, pronto para o motim. Experiente, escolheu o ponto exato do logradouro em que até um bocejo faz eco. Avisou que não sairia dali sem antes ter uma audiência com o prefeito. Saiu – da Eufrásio direto para um hospital, de onde escafedeu dias depois. O relato da fuga é espetacular.
Aconteceu numa tarde de mormaço e preguiça – uma Sexta-Feira Santa. Com os préstimos de um galho de árvore, conta ele, conseguiu ser catapultado para o outro lado do muro da clínica. Uma proeza olímpica para um homem prestes a completar 69 anos, 17 deles passados nas ruas, onde mora. Solta cobras e lagartos sobre o que chama de “intervenção à força”, “uma arbitrariedade”, contra a qual providenciou os devidos BOs e constituiu um advogado. Reivindica, sobretudo, o que ficou para trás na operação – latinhas para reciclagem, livros e, o mais importante, três cadernos preenchidos à mão ao longo de uma década. “São crônicas do que vejo nas calçadas, mas também uma autobiografia. É o meu livro. Quero publicá-lo.”
Há semelhanças entre a vida de José de Camargo e a de Joe Gould – o literato maltrapilho eternizado pelo jornalista norte-americano Joseph Mitchell, em 1942. Prova disso é a atenção que a imprensa lhe dá. Em 2010, uma deliciosa reportagem do jornalista Sandro Moser, da Gazeta do Povo, apresentou-o como o mais nanico dos candidatos a uma vaga na Câmara dos Deputados. A paupérrima campanha de Zezé de Camargo – como foi apelidado, em homenagem ao compositor de É o amor – era a última Coca-Cola do deserto. O comitê eleitoral funcionava numa casa avariada, aquecida por um fogareiro à base de tijolos, cercada de cabos eleitorais tão espoliados quanto o líder. “Tive 703 votos”, festeja.
Quem lembra da época da tevê a lenha, na década de 1960, é capaz de jurar que José de Camargo fez estágio com Blota Júnior, na antiga TV Record
Não foi seu début na política. Jovem, no Norte do Paraná – quando tinha endereço fixo –, Zezé fez campanhas para dois políticos da região. Maduro e já às voltas com a informalidade, arriscou nova rodada como marqueteiro, desta vez em Porto Velho (RO). Paralelo, tentava ele mesmo se eleger. Entre uma urna e outra, exerceu a livre infidelidade partidária, passando pelo PDT, PRTB, PSDC, os quais cita sempre pelo número (“no ‘12’, eu...”). Este ano, pleiteia uma vaga na Câmara Municipal pelo “27”. Conta com o apoio do vereador José Carlos Chicarelli, de cujo gabinete faz pequenos despachos e dá telefonemas. “Precisamos ajudá-lo”, contemporiza Chicarelli, sem esclarecer se fala da candidatura, dos protestos entusiasmados do correligionário, do talento do amigo para arranca-rabos ou ao fato de que Camargo parece estar, às vezes, quatro doses à frente da humanidade.
“Estou no meu juízo perfeito”, garante. Uma de suas qualidades mais impressionantes é a oratória. Zezé fez bonito diante das câmeras, meses atrás, ao virar personagem de uma série da repórter Fernanda Fraga, da RPCTV. O tema – a vida escondida das ruas. Quem lembra da época da tevê a lenha, na década de 1960, é capaz de jurar que José de Camargo fez estágio com Blota Júnior, na antiga TV Record. Sua voz é empostada, veloz, cheia de marra e de ondas, características que se acentuam a depender do tamanho da plateia. Usa com destreza expressões tais como “há de se citar”, “ardilosa agressão”, “para ser mais preciso” e “conduta irregular”. Rejeita mesóclises. Cita leis de cor. Monteiro Lobato o chamaria de “o falastrão da biblioteca”. Mal dá para acreditar que, na escola, tirou o primário.
“Falo bem porque fui vendedor de Delta Larousse”, justifica-se. Segundo consta, também atuou como radialista, proprietário de cinemas (em Araruva e em Rosário do Ivaí), dono de estacionamento. Dentre as corporações nas quais trabalhou constam a Matarazzo e a Alpargatas. Mas a primeira atividade de José foi mesmo a rua – dos 7 aos 14 anos, nas cercanias de Marilândia do Sul, Norte do Paraná. Aprendeu a se virar, inclusive na arte da boa conversa. Na adolescência, tomou prumo e cresceu. Casou, teve filhos, fez alguma fortuna. Seu périplo só não era um romance de cavalaria perfeito porque alguma coisa acontecia no seu coração a cada vez que cruzava com os mendigos de São Paulo, onde morou certa vez.
No começo, pensava escrever sobre eles. Depois, encasquetou que devia se tornar um deles. “Tá tudo contado nos cadernos que a prefeitura me tomou”, esbraveja, com se tivesse um raio que o parta na palma da mão. O enredo é dos bons. Em 1990 – lembra –, veio Fernando Collor e com ele o saque da poupança, a falência da família Camargo e o fundo de uma cama. Teve depressão. Pelas contas, foram três tentativas de suicídio. Na última, em 1996, já posicionado para se atirar do oitavo andar de um prédio, em Londrina, congelou. De volta ao chão, uma visão beatífica. A experiência mística foi determinante para que o ex-ateu abraçasse a clandestinidade. Em 1998, “partiu sereno”. “Gosto da rua”, costuma repetir.
Sua primeira noite foi em São Paulo, pois tinha de ser. Ali, sofreu um assalto corretivo e ficou só de cuecas. Entendeu pela força que a mendicância, ainda que romântica, usava de propinas. No começo, tentou dividir com sua nova turma os conhecimentos adquiridos nos tempos da fartura. Promoveu um sopão, mas a aventura de baixa gastronomia durou até as panelas serem pesadas e vendidas por um necessitado. Os episódios de fracasso se repetem, mas na voz de Zezé parecem crônicas para serem lidas no recreio. Aguarda a próxima derrota, inclusive: na eleição de 2016, quer superar a marca anterior e chegar a mil votos. Conta com o apoio da associação Ágape, de moradores de rua, da qual é um dos fundadores, mas sabe que vai ser o bicho: “Tenho inimigos”, avisa, com a voz solene de um sedutor.
Em tempo. Zezé de Camargo está por ora abrigado em Pinhais, amparado por um de seus quatro filhos. Anda azucrinado – não gosta de estar entre quatro paredes. Durante esse interregno burguês, pretende reescrever a autobiografia que toma por desaparecida. Procurada, a Prefeitura Municipal de Curitiba informa que os pertences do aposentado estão sob cuidados da Fundação de Ação Social, a salvo num guarda-volumes do Terminal Guadalupe. É para ele ir buscar.
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