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 | Foto: Vinicius Sgarbe / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Vinicius Sgarbe / Arte: Felipe Lima

Ao se formar, o advogado capixaba Gabriel Vicente Riva, 28 anos, causou impressão assim que revelou seus planos: seguiria carreira no magistério. Para muitos colegas, era como se fizesse do diploma um aviãozinho. Hoje, leciona Direito Ambiental e quetais em duas faculdades do Espírito Santo. Sua turma toda talvez ganhe um bom bocado de grana a mais que ele, mas nada que lhe tire o sono, a pinta de surfista ou o sorriso de sócio gold do Baú da Felicidade.

Tem lá seus motivos. Se a conta estiver certa, Gabriel, o Riva, começou a descobrir a que veio durante o sururu das manifestações de julho de 2013 – o ano em que botou seu bloco na rua. É bacana vê-lo falar daquele que foi o seu batismo de fumaça. Pouco dado a passeatas, até então nunca tinha esgoelado um “abaixo” ou “fora”, em coro com a multidão. “Gostei”, resume. Sobrancelhas ao alto, o corpo fala. Admite: aquela grita toda mexeu com os nervos e o coração. A gente nem imagina o quanto.

Teve certeza disso em 5 de novembro do ano passado, dia em que se somou aos milhares de brasileiros que engoliram a seco o vazamento de uma barragem que varreu para debaixo da lama o vilarejo de Bento Rodrigues (MG). À imagem e semelhança de tantos, chorou a “Tragédia de Mariana” – como o episódio ficou conhecido.

Lia com lupa os números superlativos dados pelos jornais. Viu-se pasmo diante daquele dilúvio sem arca e sem Noé. Apesar de todos os esforços, parecia que não era com ele. Até fazer o trecho entre Vitória e São Mateus e ver seu conhecido de toda uma vida, o Rio Doce, vermelho de lama. Em segundos, entendeu. Tornou-se um ativista. Tem sido assim.

Os deserdados de Mariana são tratados como estorvo pelo governo federal e são ignorados por ambientalistas que não saem de congressos internacionais

Gabriel carrega um laptop para tudo que é lado. Abre-o sem pudores em qualquer balcão e canta a bola para quem está perto. “Olhe só que doida essa foto aqui na tela. Saca esse homem: tinha 50 galinhas e 30, 40 porcos. Agora...” Depois dá um enter e se põe a falar dos desesperados que batiam de porta em porta, gritando: “Corra que a barragem estourou”. E em seguida conta de seu João, morador de Pedras. Imita direitinho a fala do matuto – eivada de elogios fúnebres a pés de ameixa e a jabuticabas de um quintal que não existe mais. Segue na encenação um panegírico do ribeirinho aos peixes que ficaram na saudade: “Sambaqui, piau, carpa, tilápia. No Natal a gente planejava assar um bem graúdo, mas teve peixe não. Se quiser, agora precisa comprar”. Se alguém chora? Não duvidem.

Cada história que Gabriel revive soa como um cordel encantado. Podia se chamar: “E a sirene da mineradora não tocou - a maior tragédia ambiental brasileira contada por seus perdedores”. Se alguém achar o conteúdo apenas tocante, não seja por isso, ele caprucha no rebuço: “O que busco é a paridade entre conhecimento científico e saber popular. Vamos ouvir esse cara?”, provoca. E lá vai ele, qual um Guimarães Rosa batendo pernas nas veredas de Cordisburgo, com ganas de mostrar como são e como vivem os órfãos da Samarco.

“Até hoje as pessoas não têm noção...”, diz. Lembra do prefeito que tomou água do rio só para dizer que o medo dos químicos da mineração é besteira do povo. Pois nos restaurantes de lá só se faz comida com água mineral. O pano branco amarrado nas torneiras sempre fica sujo. É o sudário da prova. “A lama engoliu quase um Espírito Santo inteiro. Arruinou a rotina de 1,5 milhão de pessoas... Lançou 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos na natureza”, protesta. Gabriel não se aguenta e lembra que não bastasse a fúria do capitalismo selvagem, os deserdados de Mariana são tratados como estorvo pelo governo federal; ignorados por ambientalistas que não saem de congressos internacionais. Ave. “Um simples pesar por Mariana não serve”.

É por causa desses órfãos que Gabriel insiste em abrir o laptop e bater com a língua nos dentes: a “Tragédia de Mariana” é a sua Tchernobyl. Sua conversão à causa não é só poética. É política. Tornou-se um dos 130 e poucos militantes do Fórum Capixaba em Defesa do Rio Doce, formado por mais de 80 entidades regionais, das mais diversas cores e matrizes. Feministas? Têm lá. O fórum é um mundão. Participar dos encontros virou uma droga. As reuniões são semanais – “onde der”. Vale a casa paroquial ou uma tenda do MST. Para não faltar, o professor troca aula com quem pode, pede de joelhos um arrego. Está a serviço do rio, melhor, do river.

Faz pouco, esteve em Washington, para com seus pares chamar atenção das autoridades da ONU, OEA, o escambau. A comitiva brasileira viajou sem lenço e sem documento. Órgãos públicos e empresas privadas arroladas no ocorrido não lhes deram nem trela nem dados. “Quando chegamos lá, os americanos tinham em mãos os relatórios que aqui no Brasil nos negaram”. Pois deixe estar, pecadores. Nessas horas de pouco caso, quase sai faísca do laptop do Gabriel. As fotos da lama, os poemas e historietas da gente da beira se encarregam de restituir a moralidade. “Olhe só que foto, meu irmão. Esse sujeito tomava banho no Rio Doce todos os dias. Acredita que lhe disseram para ir tomar banho noutro lugar?”

Epílogo

Há pouco mais de um mês, Gabriel esteve na capital paranaense para falar aos alunos da UniCuritiba. Veio a convite do também advogado Diogo Busse, 33 anos. Ambos idealistas, mal se conheciam, mas pareciam veteranos de Monte Castelo; amigos de vidas passadas. O capixaba veio porque lhe convidaram, mas sobretudo veio porque precisa: teme que os 600 quilômetros de inundação e suas vítimas caiam no esquecimento. Essa trama – não cansa de dizer – ultrapassa a soma de 19 mortos. A “Tragédia de Mariana” continua acontecendo, pois os efeitos do acidente são cumulativos. Não há paralelos – e, se alguém pensou no vazamento de óleo no Golfo do México em 2010, melhor esquecer: aquilo foi papinha de farinha láctea perto do que se deu no Brasil.

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