No vaivém da conversa fiada, dona Liamir Hauer 88 anos declarados me falou de uma sua tia de 107 anos. Achei não ter escutado direito culpa do cerume. Alguns decibéis acima, Liamir repetiu a conta, batendo o pezinho: "CEN-TO-E-SE-TE." Não só entendi como, pronto, pedi que me arrumasse uma entrevista, adoro gente vivida.
Liamir caso alguém não a conheça é parnanguara de família tradicional, foi primeira dama de Curitiba e arrepiou meia cidade, anos atrás, ao escrever O Circo, livro no qual conta inconfidências da high society. Muitos juraram esganá-la na frente da Catedral, mas quem poderia: a mulher é um desacato divertida, inteligente, bem disposta como uma juvenista às vésperas da excursão de formatura. Só faltava ter uma parenta centenária, tão acesa quanto ela, fazendo-nos crer numa linhagem de Liamires. Seria o céu.
Pois a tia de Liamir dona Edmée Pinto dos Santos andava um cisco até poucos meses. Em outubro passado, repentino, perdeu o pique e deu de se recolher à poltrona e ao silêncio. Mas nada que tenha lhe tirado a graça ao ver um vulto fazendo micagem na sua frente: não se tratam das bisnetas, mas da octogenária sobrinha Liamir, em fagueiras visitas para o café da tarde, a mais sagrada das instituições curitibanas.
A chegada de Liamir e cia é tão ruidosa quanto o encerramento da Olimpíada de Pequim. O que enche Edmée de orgulho: no último século as meninas não saíram do rabo de sua saia. Enquanto a visitante conta às demais peripécias de seus três casamentos e da homenagem que lhe fizeram no Centro de Letras, uma outra figura transita pés sobre plumas, uma Biela. Chama-se Maria de Lourdes Wunder, a Lurdinha.
Lurdinha tem 77 anos e é a filha única de Edmée e do finado Rômulo. Contida, arruma a casa para toda a gente e toda dedos cuida da mãe. A muito custo, as duas primas sentaram para me contar em miúdos a biografia da matriarca. Não chegaram a um acordo: a histriônica Liamir e a suave Lurdinha falaram de duas Edmées diferentes enquanto a interessada assistia a tudo, tsc, tsc. "Como falam essas gurias."
Graças ao bom Deus, o fuá não resultou num cisma na família. Conto-lhes o mínimo. Edmée, de nome francês, tinha a belezinha das portuguesas. Sua única vaidade, os chapéus, foram abandonados assim que se casou. Cabelos, à la garçonne, cortados no barbeiro, sempre. Estudou para guarda-livros, como o pai, José Nogueira dos Santos inventor do politon, o violino de boca. Aplicou sua prenda para os números trabalhando 50 anos nos armarinhos Monroe Rua Riachuelo, 258 ao lado do marido. E tem até hoje a mesma geladeira, uma Kelvinator 1948.
Sua história teria sido um pacato expediente não fosse uma daquelas peças do destino. Na década de 1930, seus dois filhos pequenos José e Benedito morreram com a diferença de um mês e meio entre um e outro. O sofrimento fez com que ela e o marido se aproximassem do espiritismo. Tornaram-se membros do União e Caridade, na Visconde de Guarapuava, e dados a ajudar os desvalidos. Não raro, formavam-se filas de pedintes nas calçadas: sabem que ali vive uma boa senhora. E olhe que faz tempo.
De frente para o trio Edmée, Liamir e Lurdinha, impossível não imaginar que enquanto elas tomaram inúmeros cafés com biscoitos falando da tia Maruca, lá fora correu o suicídio de Vargas, a revolução sexual, o 11 de Setembro. Às vezes, é verdade, ficam ressabiadas porque a mesa da copa anda ficando muito grande. "Eu sou a próxima", debocha Liamir. Risos à forra.
Lurdinha, nem bola. Tem muito a fazer. Falar com a mãe, por exemplo. Como Edmée não ouve, escreve tudo em letras graúdas, num caderno de espiral, para que ela leia. Foi assim que avisou a idade que completou em maio. Susto. Assim a anima nas horas de quietude. "O que a senhora tem?", diz uma página. "Linda", outra.
Edmée, conta-se, já se disse cansada, que perdeu a hora de partir. Mas sabe como é. Liamir chega, Lurdinha se agita e a vida sempre vence no casarão da Gonçalves Dias.
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