| Foto: Foto: Valterci Santos/Gazeta do Povo. Arte: Felipe Lima

No vaivém da conversa fiada, dona Liamir Hauer – 88 anos declarados – me falou de uma sua tia de 107 anos. Achei não ter escutado direito – culpa do cerume. Alguns decibéis acima, Liamir repetiu a conta, batendo o pezinho: "CEN-TO-E-SE-TE." Não só entendi como, pronto, pedi que me arrumasse uma entrevista, adoro gente vivida.

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Liamir – caso alguém não a conheça – é parnanguara de família tradicional, foi primeira dama de Curitiba e arrepiou meia cidade, anos atrás, ao escrever O Circo, livro no qual conta inconfidências da high society. Muitos juraram esganá-la na frente da Catedral, mas quem poderia: a mulher é um desacato – divertida, inteligente, bem disposta como uma juvenista às vésperas da excursão de formatura. Só faltava ter uma parenta centenária, tão acesa quanto ela, fazendo-nos crer numa linhagem de Liamires. Seria o céu.

Pois a tia de Liamir – dona Edmée Pinto dos Santos – andava um cisco até poucos meses. Em outubro passado, repentino, perdeu o pique e deu de se recolher à poltrona e ao silêncio. Mas nada que tenha lhe tirado a graça ao ver um vulto fazendo micagem na sua frente: não se tratam das bisnetas, mas da octogenária sobrinha Liamir, em fagueiras visitas para o café da tarde, a mais sagrada das instituições curitibanas.

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A chegada de Liamir e cia é tão ruidosa quanto o encerramento da Olimpíada de Pequim. O que enche Edmée de orgulho: no último século as meninas não saíram do rabo de sua saia. Enquanto a visitante conta às demais peripécias de seus três casamentos e da homenagem que lhe fizeram no Centro de Letras, uma outra figura transita pés sobre plumas, uma Biela. Chama-se Maria de Lourdes Wunder, a Lurdinha.

Lurdinha tem 77 anos e é a filha única de Edmée e do finado Rômulo. Contida, arruma a casa para toda a gente e toda dedos cuida da mãe. A muito custo, as duas primas sentaram para me contar em miúdos a biografia da matriarca. Não chegaram a um acordo: a histriônica Liamir e a suave Lurdinha falaram de duas Edmées diferentes enquanto a interessada assistia a tudo, tsc, tsc. "Como falam essas gurias."

Graças ao bom Deus, o fuá não resultou num cisma na família. Conto-lhes o mínimo. Edmée, de nome francês, tinha a belezinha das portuguesas. Sua única vaidade, os chapéus, foram abandonados assim que se casou. Cabelos, à la garçonne, cortados no barbeiro, sempre. Estudou para guarda-livros, como o pai, José Nogueira dos Santos – inventor do politon, o violino de boca. Aplicou sua prenda para os números trabalhando 50 anos nos armarinhos Monroe – Rua Riachuelo, 258 – ao lado do marido. E tem até hoje a mesma geladeira, uma Kelvinator 1948.

Sua história teria sido um pacato expediente não fosse uma daquelas peças do destino. Na década de 1930, seus dois filhos pequenos – José e Benedito – morreram com a diferença de um mês e meio entre um e outro. O sofrimento fez com que ela e o marido se aproximassem do espiritismo. Tornaram-se membros do União e Caridade, na Visconde de Guarapuava, e dados a ajudar os desvalidos. Não raro, formavam-se filas de pedintes nas calçadas: sabem que ali vive uma boa senhora. E olhe que faz tempo.

De frente para o trio Edmée, Liamir e Lurdinha, impossível não imaginar que enquanto elas tomaram inúmeros cafés com biscoitos falando da tia Maruca, lá fora correu o suicídio de Vargas, a revolução sexual, o 11 de Setembro. Às vezes, é verdade, ficam ressabiadas porque a mesa da copa anda ficando muito grande. "Eu sou a próxima", debocha Liamir. Risos à forra.

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Lurdinha, nem bola. Tem muito a fazer. Falar com a mãe, por exemplo. Como Edmée não ouve, escreve tudo em letras graúdas, num caderno de espiral, para que ela leia. Foi assim que avisou a idade que completou em maio. Susto. Assim a anima nas horas de quietude. "O que a senhora tem?", diz uma página. "Linda", outra.

Edmée, conta-se, já se disse cansada, que perdeu a hora de partir. Mas sabe como é. Liamir chega, Lurdinha se agita e a vida sempre vence no casarão da Gonçalves Dias.